sábado, 28 de abril de 2012

A loucura de palavras sãs - Rasgando as etiquetas

Para compreender o propósito e conteúdo do blog, segue um texto abaixo, resultado de diversas pesquisas bibliográficas, escrito para uma comunicação oral, apresentada por mim e orientada pelo Prof. Dr. Silas Borges Monteiro, no VIII Seminário de Linguagens, Instituto de Linguagens/UFMT, em 2010.

ΣΧΙΖΟΦΡΕΝΕΙΑ

O homem primitivo atribuía uma origem sobrenatural à perturbação mental. Evidências na forma de rolos de papiro, monumentos e os antigos livros da Bíblia revelam que também os antigos egípcios, babilônios, árabes e hebreus acreditavam que a perturbação mental era decorrente da possessão por forças sobrenaturais.

De acordo com Terence McKenna, escritor e filósofo norte-americano, diferentemente da nossa sociedade atual, pessoas que apresentavam “tendências esquizofrênicas”, numa comunidade tradicional tribal, afastada dos conceitos da “moral cristã ocidental”, eram imediatamente separadas do bando e colocadas sob o cuidado e tutela de mestres xamãs ou sacerdotes e lhes era dito: “você é especial, suas habilidades são centrais para a saúde da nossa sociedade. Você vai curar, vai profetizar e vai guiar a nossa sociedade em suas decisões mais fundamentais”.

Com a institucionalização do cristianismo no século IV d.C. e com a queda o Império Romano do Ocidente no ano de 476 d.C. a doença mental é associada à possessão por espíritos malignos. Durante toda a Idade Média a religião cristã tornou-se a força dominante em virtualmente todos os aspectos da vida européia. A vida era percebida como uma luta entre as forças do bem e as forças do mal, sendo estas dirigidas pelo Diabo. Consequentemente, a perturbação mental foi considerada como um pecado ou possessão pelo Diabo. Tentava-se acalmar os demônios perturbadores com música ou afugentá-los por meio de orações ou exorcismos. Muitas vezes, os doentes mentais eram submetidos a procedimentos brutais: podiam ser acorrentados, submersos em água a ferver ou em banhos gelados, privados de comida, espancados, queimados, castrados ou sujeitos a outras formas de tortura. Eles também poderiam ser acusados de ser agentes do Demônio e rotulados de bruxas ou feiticeiros, passando pela Inquisição e sendo condenados à morte.

A partir do século XVII se inicia o processo de enclausuramento dos loucos. A loucura era sinônimo de vagabundagem e foram criadas instituições para “acolher” esta forma de marginalidade que apresentava um risco para a ordem pública.

Somente no século XVIII é que a doença mental voltou a ser vista como comportamento irracional, originado de causas naturais, assim como pensavam os gregos e romanos. No entanto, os doentes mentais continuaram a ser vistos como uma ameaça à sociedade e fundaram-se hospitais por toda a Europa com o fim de “cuidar” desses pacientes. A verdade é que estes hospitais que não passavam de meros “asilos para lunáticos”, como eram chamados, se assemelhavam muito a prisões.

Esquizofrenia se enquadra entre as doenças mentais e é um termo geral para formas de comportamento que nós não entendemos. No século XIX havia o termo melancolia, o que agora chamaríamos de depressão bipolar e assim por diante. Mas, todas as formas de tristeza, infelicidade ou má adaptação foram rotuladas de melancolia. A esquizofrenia é algo parecido. De acordo com o DSM IV (Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais): “A Esquizofrenia é uma doença da Personalidade total que afeta a zona central do eu e altera toda estrutura vivencial. Culturalmente o esquizofrênico representa o estereotipo do "louco", um indivíduo que produz grande estranheza social devido ao seu desprezo para com a realidade reconhecida. Agindo como alguém que rompeu as amarras da concordância cultural, o esquizofrênico menospreza a razão e perde a liberdade de escapar às suas fantasias. A desorganização do pensamento é defendida por alguns autores, como Bleuler, em particular, como o aspecto mais importante da Esquizofrenia. Em vista da dificuldade inerente ao exame do pensamento, este será feito pela qualidade do discurso do paciente, portanto, o conceito de discurso desorganizado foi salientado na definição de Esquizofrenia usada neste manual.”

Na nossa sociedade, uma pessoa que apresenta “tendências esquizofrênicas”, muitas vezes, é institucionalizada também, assim como tem ocorrido desde o século XVII, e lhe é dito: “você não se encaixa, você está se tornando um problema, você não se sustenta, você não tem o mesmo valor para nós, você está doente, você precisa ir para o hospital, você tem que ser trancado, você está em par com prisioneiros e cachorros perdidos na nossa sociedade”. Então, a solução é colocá-la num lugar onde todos estão gravemente dementes, um ambiente que, por si só, contribui para o agravamento da loucura. Claro que essa visão e comportamento clínico, vem mudando, nas últimas décadas e hoje e psiquiatria lança um novo olhar sobre as doenças mentais, assim com a área médica, de forma geral. O tratamento atual é muito mais humanizado e holístico, tendo em vista as particularidades de cada paciente, seu histórico, sua personalidade, suas condições sociais, econômicas, culturais etc.

Para entender o doente mental não importa tanto a realidade objetiva, as coisas em si que ele vive ou percebe, mas o modo como ele as vivencia, a sua vivência das coisas, a sua verdade sobre o mundo. No entanto, a nossa sociedade não tem a tradição de se aventurar nesses mundos mentais. Nós temos pavor do delírio, das alucinações e de qualquer fato ou pensamento que nos afaste da realidade, do mundo consciente. Nós tememos o delírio e desqualificamos o discurso de um esquizofrênico porque o nosso mundo é envolto numa densa camada, chamada moral. Usamos uma etiqueta verbal que nos impede de avançar nos mundos profundos e obscuros da mente, assim como nos impede de expressar o que de fato pensamos e sentimos. Essa etiqueta nos é imposta desde a infância, quando as crianças são reprimidas por dizer o que pensam e o que acham de determinada pessoa ou situação. Essa etiqueta determina o que “devemos” dizer, em detrimento do que “queremos” dizer. Todo o nosso discurso é moldado de acordo com o local e as circunstâncias em que nos encontramos e dizemos apenas aquilo que achamos “correto” dizer, sempre com o cuidado de não causar desconfortos ou situações embaraçosas.

O esquizofrênico não. Ele vive num mundo além da superfície e das etiquetas. Ele não se importa com o que o “outro” vai achar das coisas que diz ou faz.

Esse comportamento é visto como um desvio, na nossa sociedade, e o esquizofrênico é, então, encaminhado a psicólogos e psiquiatras que, supostamente, saberão como lidar com ele. Os profissionais da saúde, então, se encarregam de diagnosticar e rotular o paciente, dentro do Código Internacional de Doenças (CID-10) ou do Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM IV). A loucura, assim, é vista e falada por aqueles que se apresentam como dotados de razão e o portador dessa loucura é silenciado, através de medicamentos (os chamados “antipsicóticos”) e encaminhado a um hospital psiquiátrico ou outro local de tratamento, sendo constantemente lembrado de que é louco e precisa melhorar (ser “normal”) se quiser voltar para casa. Inicia-se, assim, o procedimento de exclusão desse ser.

No livro “História da Loucura”, Michel Foucault reconstitui a história de alguns procedimentos de exclusão social a partir do final da Idade Média. Apesar de as figuras, vítimas de submissão a esses procedimentos serem substituídas, de tempos em tempos, os “jogos de exclusão” são sempre retomados, a partir de uma mesma estrutura dicotômica de divisão entre indivíduos: os que segregam e os segregados.

A linguagem sempre foi um instrumento de poder dos que segregam sobre os segregados. As palavras têm o poder de persuadir, induzir, nomear e categorizar. Assim, a partir do momento em que o psiquiatra se dirige ao paciente e à sua família, dizendo: “o diagnóstico é esquizofrenia e não há cura, apenas tratamento com remédios e acompanhamento psiquiátrico” se produz uma mudança no curso de vida de uma família inteira. Então, a partir desse momento, os dizeres desse paciente são vistos sob a ótica da patologia pelos profissionais da saúde e desqualificados pela sociedade.

Além de um instrumento de poder, a linguagem também tem a capacidade de representar o pensamento. No livro “As palavras e as coisas”, Foucault diz: “[...] representar não quer dizer aqui traduzir, dar uma versão visível, fabricar um duplo material que possa, na vertente externa do corpo, reproduzir o pensamento em sua exatidão. Representar deve-se entender no sentido estrito: a linguagem representa o pensamento como o pensamento representa a si mesmo”. Ele ainda complementa: “A linguagem está a meio caminho entre as figuras visíveis da natureza e as conveniências secretas dos discursos esotéricos. É uma natureza fragmentada, dividida contra ela mesma e alterada, que perdeu sua transparência primeira; é um segredo que traz em si, mas na superfície, as marcas decifráveis daquilo que ele quer dizer. É, ao mesmo tempo, revelação subterrânea e revelação que, pouco a pouco, se restabelece numa claridade ascendente”.

Assim, a linguagem, produto do ser humano, determina aspectos e características de seu próprio criador. E se o criador desse discurso é um louco, essa fala será vista sob a ótica de um estranhamento, um desvio da razão. Dessa forma, o louco não é de fato ouvido e não tem voz ativa.

Há uma tendência mundial em classificar o normal em torno de um conceito de média. O olhar para o doente mental é um olhar pejorativo, que o classifica como subumano, enquanto que o “normal” está na média, ou seja, é perfeitamente aceito pela sociedade. Para muitos filósofos e pensadores a doença é uma dimensão da saúde e da vida. Nietzsche diz sim à doença, pois ela é parte da vida. Para Georges Canguilhem não há razão para dizer que a doença é menos vida que a saúde. Ele defende a idéia de que a norma seria um conceito escolástico e o normal teria uma tendência racionalista, com uma configuração sistemática. Há uma tendência em encaixar e enquadrar as pessoas em classes, em grupos. O enquadramento patológico é o mais cruel, talvez, pois há uma tentativa de convencer o outro de que ele sofre de algo e esse outro nem sempre reconhece esse algo do qual ele é acusado de sofrer, de possuir. Há a idéia de dizer: “admita que você é louco, que você é patológico, senão não te atendo, não te consulto, pois tenho esse poder, como médico, como psiquiatra ou psicólogo”. Porque simplesmente não atender, não cuidar, não ouvir, sem impor condições? Claude Bernard dá valor à observação clínica, pois para ele, não se trata de uma observação meramente estatística, mas de uma causa próxima, que produziria um nexo obtido por aquele que observa, num determinado espaço diferenciado. Seria uma observação que cria nexos, que diz daquilo que observa, que faz relações, que ouve atentamente. Para ele, cada ser é diferenciado, com seu histórico e suas características próprias. Não levar isso em consideração é clinicar de forma indiferente, estereotipada. Foucault, em seus textos, tem sempre o cuidado de ressaltar a subjetividade, o sujeito, a possibilidade de um cuidado de si, que é um conceito anterior ao “conhece-te a ti mesmo”, dos gregos antigos. Em seu livro “O nascimento da clínica” ele diz que a luz não está na coisa, mas no olhar sobre a coisa e que o visível (descrição taxonômica) encobre o invisível (o indivíduo com suas subjetividades). Assim, muitas vezes, o médico “contamina” o diagnóstico e, por consequência, a vida de uma pessoa, pelo seu modo de ver as coisas e pelo seu hábito de categorizar e “taxonomizar”.

Observamos, então, que, desde o século XVIII, a loucura aparece como uma patologia que o médico competente, o especialista superinvestido de poder, deve dizer o que é e como tratar, impondo uma verdade e um procedimento ao paciente. Este, inversamente, é estigmatizado como um doente mental que nada sabe de sua doença e nem sequer da realidade, e que, portanto, nada pode decidir sobre sua própria situação, perdendo toda a autonomia sobre sua vida. No livro “Ecce Homo” Nietzsche diz que a loucura é “a máscara para um saber desventurado, certo em demasia”. Ele então devolve à loucura, ao menos à sua loucura, o direito à fala, conferindo uma importância crucial ao discurso delirante: através dele é a verdade, é a própria efetividade que se expressa. Contestando a pretensiosa “objetividade” da psiquiatria, Nietzsche transfere para o próprio “paciente” o poder de produzir a sua loucura e a verdade sobre ela.

Apesar de haver mudanças positivas, nos últimos anos, dentro da psiquiatria e das formas de tratamento de doentes mentais, o louco ainda é estigmatizado e segregado da sociedade. Em nossa pesquisa observamos que dentre os doentes mentais diagnosticados como esquizofrênicos muitos apresentam um discurso compreensível e, muitas vezes, lúcido, mas despido de qualquer etiqueta ou preocupação com a repercussão que esta fala pode produzir. Nosso exemplo mais expressivo é a Estamira, mulher de 62 anos de idade que vive no lixão de Gramacho, no Rio de Janeiro e personagem principal documentário do fotógrafo Marcos Prado.  O documentário narra a vida de Estamira que começa a sofrer, constantemente, alucinações por conta das marcas dolorosas da sua história, chegando a considerar-se como a visão de cada umo abstrato, e ainda acredita piamente saber tudo sobre Deus, rotulando-o de o trocadilo, o esperto ao contrário, atribuindo a si o poder de salvaguardar todas as coisas. Estamira é portadora de uma percepção imprescindível, chegando a proferir pensamentos que carregam uma máxima única em seu contexto de vida. Estamira retrata em suas palavras não somente o estado caótico dos catadores de lixo, mas também a insensibilidade das pessoas: “[...]às vezes é só resto, as vezes vem, também, descuido!”. Ela não demonstra nenhuma preocupação com a repercussão de seus dizeres e seu discurso é carregado de palavrões e intensidade no tom da voz.


Estamira - Trecho do documentário no Youtube   


Estranho, fora do comum, desusado, singular, esquisito, extravagante, excêntrico, misterioso, enigmático, anormal: todas essas acepções travestem os dizeres nas esquizofrenias, mas apenas a última acepção parece pesar mais na designação dos efeitos provocados em seus ouvintes e leitores na Psiquiatria, na Psicologia e, até, no senso comum. Nos dizeres nas esquizofrenias, eu sou excluído porque eu não entendo: ele é louco. No texto filosófico, eu sou excluído porque eu não entendo: ele é um gênio. São efeitos distintos sobre o outro que passam a ser incluídos na própria abordagem dos dizeres.

Uma dissociação radical, sem dúvida, entre normal e anormal: aquilo que causa desconforto, por não poder ser amarrado numa unidade de significação, torna-se alheio e, portanto, é colocado numa posição externa, estrangeira, na qual não há compromisso com o dizer. Quando o louco fala, o dizer que é a ruptura do dizer-padrão “normal” torna-se um sintoma, um sintoma que tem que ser referido a uma doença.

No livro “A Razão e a Loucura”, Michel Foucault diz: “Em meio ao mundo sereno da enfermidade mental, o homem moderno deixa de se comunicar com o louco; por um lado, encontramos o homem razoável, que encarrega o médico da tarefa de se ocupar da loucura e que não autoriza outra relação senão a que pode ser estabelecida através da universalidade abstrata da enfermidade; por outro, está o homem louco, que se comunica com o razoável apenas por meio de uma razão igualmente abstrata, que é ordem, constrangimento físico e moral, pressão anônima do grupo, exigência de conformidade”.



2 comentários:

Marineide Dan Ribeiro disse...

Bárbaro!!!! Sensacional!!!
Amo esse tipo de matéria!
Vou favoritar e ler com calma!!!
Está lindo o blog! O que precisar pode contar comigo.
Bjussssssssssss

Milena Nicolas disse...

Obrigada Mamis! vou postar mais coisas, toda semana...;)

Quem sou eu

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Insanamente louca por tudo que envolve a relação linguagem-cérebro-mente.... Apaixonada esposa de Rafael, estudante do último ano de Medicina e futuro Médico da Família.. Residente em Cuiabá-MT, desde 2007, onde conclui minha graduação em Letras/Inglês, na UFMT, em 2011.. Orgulhosa filha de Marineide Dan Ribeiro, mais conhecida como Márcia ou Grega.. Futura mestranda da UNICAMP/Campinas-SP...

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