Há alguns anos, quando eu ainda morava em São José do Rio Preto-SP, eu conheci um rapaz muito interessante e de comportamento muito curioso. Quando digo interessante, não é no sentido sexual ou de paquera, mas no sentido científico mesmo, de neuropatologias.
Bom, eu sempre fui fascinada pelo cérebro humano e cheguei a prestar vestibular para medicina. Na época desse meu relato, eu estava numa fase obcecada por psiquiatria e DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders). Ainda não era adepta à internet e tecnologias afins, portanto minhas fontes de pesquisa eram os livros, que encontrava na Biblioteca Municipal.
Como eu ia todos os dias à Biblioteca, para efetuar minhas leituras e pesquisas, passava bastante tempo no local e cheguei a observar a frequência constante desse rapaz, moreno, alto, cabeludo, com uma espécie de rastafári, barba rala e roupas um tanto quanto velhas e sujas. De forma geral, ele tinha um aspecto bem descuidado, mas não sugeria ser alguém que morasse na rua, se drogasse ou algo do tipo.
Ele se sentava sempre à minha frente e ficava lendo, por horas. As vezes interrompia sua leitura para olhar para as prateleiras de livros, para o teto, para o chão ou para mim. Eu notei gestos e comportamentos curiosos nele, de forma que passei a observá-lo atentamente.
Assim, passamos a nos observar mutuamente, mas esse interesse nada tinha de sexual. Era puramente um interesse pelas nossas pessoas e nossos comportamentos. Ele ficava olhando as capas dos livros que eu lia e ficava estudando meus movimentos, com um olhar fixo e analisador.
Um dia, ele se aproximou de mim e perguntou:
- O que você está lendo?
Eu sorri, contente com a aproximação, e respondi:
- Estou lendo o Manual de Psiquiatria Clínica. E você?
Assim, iniciamos um diálogo, que durou horas e que foi o mais insano que tive, em toda a minha vida.
Ele começou a falar as coisas mais sem sentido e nexo, que eu já tinha ouvido, porém, de alguma forma, eu me senti cada vez mais instigada em fazer perguntas e tentar compreender esse ser enigmático e único.
Ele me contou sobre a bateria humana que ele estava construindo, para ligar direto à TV e emitir um feixe de luz, que traria os extraterrestres à terra.
Me contou sobre a casa em que morava, com sua mãe e seus irmãos. Era uma casa simples por fora, mas mágica por dentro e cheia de túneis e passagens secretas (segundo seu relato).
Nessa altura eu já estava completamente convencida de que ele sofria de alguma desordem mental, mas, como ainda não havia estudado as desordens mais a fundo, não pensei que pudesse se tratar de uma pessoa portadora de esquizofrenia.
Eu lhe fiz várias perguntas sobre sua vida, sua família, seu trabalho, seus planos etc. Todas as respostas foram confusas e cada vez que me respondia algo, emendava sua resposta a uma outra história ou teoria, que se desenrolava por vários minutos a fio. No final de suas respostas, eu até esquecia o que tinha perguntado a princípio.
Como nunca tinha conversado com um portador de psicose ou outra doença mental, achei aquilo fascinante e tentei estender esse papo ao máximo. Até que a biblioteca fechou e ficamos do lado de fora, ainda conversando.
Eu notei que ele era muito sozinho e não tinha ninguém para conversar e ouvi-lo. Ele ficou maravilhado por ter encontrado um interlocutor e falou tanto e com tanto entusiasmo, que no final da tarde já estava com a voz rouca e a boca seca.
Levei-o a uma lanchonete e lhe paguei um lanche e refrigerante. Ele não parava de me agradecer e dizer que eu era a melhor amiga dele, de todos os tempos. Parecia criança.
Perguntei se ele se tratava com algum médico e se a família tomava conta dele, mas suas respostas foram tão desconexas, que não tive como saber. No entanto, no meio de um dos seus relatos, ele deixou indícios de que sabia que sofria de alguma doença mental e que já esteve em hospitais psiquiátricos. Pela forma que falou, entendi que sua família não o apoiava, nem cuidava dele. As razões não tenho como saber. Inclusive nem sei se ele realmente tinha alguma família ou casa.
Eu precisei voltar para minha casa e combinamos de nos reencontrar na biblioteca, na próxima terça-feira. No entanto, nunca mais o vi.
Por anos pensei nele e me indaguei sobre sua doença, se ele estava bem, se ele conseguiu algum tratamento, se ele encontrou algum novo amigo.
Até hoje me pergunto se ele era esquizofrênico ou não.
A única certeza que tenho é que ele era extremamente carente e o simples fato de ter alguém para ouvi-lo, lhe trouxe uma felicidade tamanha, que o deixou exultante.
Anos depois, estudando os sintomas e os possíveis problemas no discurso de esquizofrênicos hebefrênicos ou paranoides, fiquei repassando a nossa conversa na memória e me indagando se ele não seria portador dessa desordem mental.
Esse rapaz foi uma das razões por eu ter me decidido seguir essa linha de pesquisa.
Quero poder dar voz aos excluídos, ouvi-los com atenção, analisar seus discursos, em busca de respostas aos enigmas que eles são. Quem sabe eu não possa contribuir, de alguma forma, aos estudos que procuram trazer conforto a essas pessoas e obter uma melhor compreensão do labirinto complexo que é o cérebro humano.
6 comentários:
Depois vc procura novamente em configurações e comentários a opção "janela popup" e clica nela....
Atá amanhã
Oi,
Visitei este blog a convite de uma amiga, Marineide, gortei e ficarei! Este artigo em concreto está interessante mas, sinceramente, vou só dizer que sou fâ das Neurociências, todas em geral e já é algo em comum, para além da Mente Humana e o Rock N`Roll. Vou seguir este blog com atenção! Parabéns! Abraços.
Parabéns pelo blog. Leitura gostosa e com conteúdo. Continue assim!
Ângela
Olá Ângela,
fico feliz que goste do blog. Volte sempre!
Abs,
Milena
Oi Paulo,
obrigada pela visita!
Em breve postarei mais coisas. Espero que goste..
Abs,
Milena
Postar um comentário