Para
compreender o propósito e conteúdo do blog, segue um texto abaixo, resultado de diversas pesquisas bibliográficas, escrito para
uma comunicação oral, apresentada por mim e orientada pelo Prof. Dr. Silas Borges Monteiro, no VIII Seminário de Linguagens, Instituto
de Linguagens/UFMT, em 2010.
O homem primitivo atribuía uma origem sobrenatural à
perturbação mental. Evidências na forma de rolos de papiro, monumentos e os
antigos livros da Bíblia revelam que também os antigos egípcios, babilônios,
árabes e hebreus acreditavam que a perturbação mental era decorrente da
possessão por forças sobrenaturais.
De
acordo com Terence McKenna, escritor e filósofo norte-americano, diferentemente
da nossa sociedade atual, pessoas que apresentavam “tendências
esquizofrênicas”, numa comunidade tradicional tribal, afastada dos conceitos da
“moral cristã ocidental”, eram imediatamente separadas do bando e colocadas sob
o cuidado e tutela de mestres xamãs ou sacerdotes e lhes era dito: “você é
especial, suas habilidades são centrais para a saúde da nossa sociedade. Você
vai curar, vai profetizar e vai guiar a nossa sociedade em suas decisões mais
fundamentais”.
Com
a institucionalização do cristianismo no século IV d.C. e com a queda o Império
Romano do Ocidente no ano de 476 d.C. a doença mental é associada à possessão
por espíritos malignos. Durante toda a Idade Média a religião cristã tornou-se
a força dominante em virtualmente todos os aspectos da vida européia. A vida
era percebida como uma luta entre as forças do bem e as forças do mal, sendo
estas dirigidas pelo Diabo. Consequentemente, a perturbação mental foi
considerada como um pecado ou possessão pelo Diabo. Tentava-se acalmar os
demônios perturbadores com música ou afugentá-los por meio de orações ou
exorcismos. Muitas vezes, os doentes mentais eram submetidos a procedimentos
brutais: podiam ser acorrentados, submersos em água a ferver ou em banhos
gelados, privados de comida, espancados, queimados, castrados ou sujeitos a
outras formas de tortura. Eles também poderiam ser acusados de ser agentes do
Demônio e rotulados de bruxas ou feiticeiros, passando pela Inquisição e sendo
condenados à morte.
A
partir do século XVII se inicia o processo de enclausuramento dos loucos. A
loucura era sinônimo de vagabundagem e foram criadas instituições para
“acolher” esta forma de marginalidade que apresentava um risco para a ordem
pública.
Somente
no século XVIII é que a doença mental voltou a ser vista como comportamento
irracional, originado de causas naturais, assim como pensavam os gregos e
romanos. No entanto, os doentes mentais continuaram a ser vistos como uma
ameaça à sociedade e fundaram-se hospitais por toda a Europa com o fim de
“cuidar” desses pacientes. A verdade é que estes hospitais que não passavam de
meros “asilos para lunáticos”, como eram chamados, se assemelhavam muito a
prisões.
Esquizofrenia
se enquadra entre as doenças mentais e é um termo geral para formas de
comportamento que nós não entendemos. No século XIX havia o termo melancolia, o
que agora chamaríamos de depressão bipolar e assim por diante. Mas, todas as
formas de tristeza, infelicidade ou má adaptação foram rotuladas de melancolia.
A esquizofrenia é algo parecido. De acordo com o DSM IV (Manual de Diagnóstico
e Estatística das Perturbações Mentais): “A Esquizofrenia é uma doença da
Personalidade total que afeta a zona central do eu e altera toda estrutura
vivencial. Culturalmente o esquizofrênico representa o estereotipo do
"louco", um indivíduo que produz grande estranheza social devido ao
seu desprezo para com a realidade reconhecida. Agindo como alguém que rompeu as
amarras da concordância cultural, o esquizofrênico menospreza a razão e perde a
liberdade de escapar às suas fantasias. A desorganização do pensamento é
defendida por alguns autores, como Bleuler, em particular, como o aspecto mais
importante da Esquizofrenia. Em vista da dificuldade inerente ao exame do
pensamento, este será feito pela qualidade do discurso do paciente, portanto, o
conceito de discurso desorganizado foi salientado na definição de Esquizofrenia
usada neste manual.”
Na
nossa sociedade, uma pessoa que apresenta “tendências esquizofrênicas”, muitas
vezes, é institucionalizada também, assim como tem ocorrido desde o século
XVII, e lhe é dito: “você não se encaixa, você está se tornando um problema,
você não se sustenta, você não tem o mesmo valor para nós, você está doente,
você precisa ir para o hospital, você tem que ser trancado, você está em par
com prisioneiros e cachorros perdidos na nossa sociedade”. Então, a solução é
colocá-la num lugar onde todos estão gravemente dementes, um ambiente que, por
si só, contribui para o agravamento da loucura. Claro que essa visão e comportamento clínico, vem mudando, nas últimas décadas e hoje e psiquiatria lança um novo olhar sobre as doenças mentais, assim com a área médica, de forma geral. O tratamento atual é muito mais humanizado e holístico, tendo em vista as particularidades de cada paciente, seu histórico, sua personalidade, suas condições sociais, econômicas, culturais etc.
Para
entender o doente mental não importa tanto a realidade objetiva, as coisas em
si que ele vive ou percebe, mas o modo como ele as vivencia, a sua vivência das
coisas, a sua verdade sobre o mundo. No entanto, a nossa sociedade não tem a
tradição de se aventurar nesses mundos mentais. Nós temos pavor do delírio, das
alucinações e de qualquer fato ou pensamento que nos afaste da realidade, do
mundo consciente. Nós tememos o delírio e desqualificamos o discurso de um
esquizofrênico porque o nosso mundo é envolto numa densa camada, chamada moral.
Usamos uma etiqueta verbal que nos impede de avançar nos mundos profundos e
obscuros da mente, assim como nos impede de expressar o que de fato pensamos e
sentimos. Essa etiqueta nos é imposta desde a infância, quando as crianças são
reprimidas por dizer o que pensam e o que acham de determinada pessoa ou situação.
Essa etiqueta determina o que “devemos” dizer, em detrimento do que “queremos”
dizer. Todo o nosso discurso é moldado de acordo com o local e as
circunstâncias em que nos encontramos e dizemos apenas aquilo que achamos
“correto” dizer, sempre com o cuidado de não causar desconfortos ou situações
embaraçosas.
O
esquizofrênico não. Ele vive num mundo além da superfície e das etiquetas. Ele
não se importa com o que o “outro” vai achar das coisas que diz ou faz.
Esse
comportamento é visto como um desvio, na nossa sociedade, e o esquizofrênico é,
então, encaminhado a psicólogos e psiquiatras que, supostamente, saberão como
lidar com ele. Os profissionais da saúde, então, se encarregam de diagnosticar
e rotular o paciente, dentro do Código Internacional de Doenças (CID-10) ou do
Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM IV). A
loucura, assim, é vista e falada por aqueles que se apresentam como dotados de
razão e o portador dessa loucura é silenciado, através de medicamentos (os
chamados “antipsicóticos”) e encaminhado a um hospital psiquiátrico ou outro local de tratamento, sendo
constantemente lembrado de que é louco e precisa melhorar (ser “normal”) se
quiser voltar para casa. Inicia-se, assim, o procedimento de exclusão desse
ser.
No
livro “História da Loucura”, Michel Foucault reconstitui a história de alguns
procedimentos de exclusão social a partir do final da Idade Média. Apesar de as
figuras, vítimas de submissão a esses procedimentos serem substituídas, de
tempos em tempos, os “jogos de exclusão” são sempre retomados, a partir de uma
mesma estrutura dicotômica de divisão entre indivíduos: os que segregam e os
segregados.
A
linguagem sempre foi um instrumento de poder dos que segregam sobre os
segregados. As palavras têm o poder de persuadir, induzir, nomear e
categorizar. Assim, a partir do momento em que o psiquiatra se dirige ao
paciente e à sua família, dizendo: “o diagnóstico é esquizofrenia e não há
cura, apenas tratamento com remédios e acompanhamento psiquiátrico” se produz
uma mudança no curso de vida de uma família inteira. Então, a partir desse
momento, os dizeres desse paciente são vistos sob a ótica da patologia pelos
profissionais da saúde e desqualificados pela sociedade.
Além
de um instrumento de poder, a linguagem também tem a capacidade de representar
o pensamento. No livro “As palavras e as coisas”, Foucault diz:
“[...] representar não quer dizer aqui traduzir, dar uma versão visível,
fabricar um duplo material que possa, na vertente externa do corpo, reproduzir
o pensamento em sua exatidão. Representar deve-se entender no sentido estrito:
a linguagem representa o pensamento como o pensamento representa a si mesmo”.
Ele ainda complementa: “A linguagem está a meio caminho entre as figuras
visíveis da natureza e as conveniências secretas dos discursos esotéricos. É
uma natureza fragmentada, dividida contra ela mesma e alterada, que perdeu sua
transparência primeira; é um segredo que traz em si, mas na superfície, as
marcas decifráveis daquilo que ele quer dizer. É, ao mesmo tempo, revelação
subterrânea e revelação que, pouco a pouco, se restabelece numa claridade
ascendente”.
Assim,
a linguagem, produto do ser humano, determina aspectos e características de seu
próprio criador. E se o criador desse discurso é um louco, essa fala será vista
sob a ótica de um estranhamento, um desvio da razão. Dessa forma, o louco não é
de fato ouvido e não tem voz ativa.
Há
uma tendência mundial em classificar o normal em torno de um conceito de média.
O olhar para o doente mental é um olhar pejorativo, que o classifica como
subumano, enquanto que o “normal” está na média, ou seja, é perfeitamente
aceito pela sociedade. Para muitos filósofos e pensadores a doença é uma
dimensão da saúde e da vida. Nietzsche diz sim à doença, pois ela é parte da
vida. Para Georges Canguilhem não há razão para dizer que a doença é menos vida
que a saúde. Ele defende a idéia de que a norma seria um conceito escolástico e
o normal teria uma tendência racionalista, com uma configuração sistemática. Há
uma tendência em encaixar e enquadrar as pessoas em classes, em grupos. O
enquadramento patológico é o mais cruel, talvez, pois há uma tentativa de
convencer o outro de que ele sofre de algo e esse outro nem sempre reconhece
esse algo do qual ele é acusado de sofrer, de possuir. Há a idéia de dizer:
“admita que você é louco, que você é patológico, senão não te atendo, não te
consulto, pois tenho esse poder, como médico, como psiquiatra ou psicólogo”.
Porque simplesmente não atender, não cuidar, não ouvir, sem impor condições?
Claude Bernard dá valor à observação clínica, pois para ele, não se trata de
uma observação meramente estatística, mas de uma causa próxima, que produziria
um nexo obtido por aquele que observa, num determinado espaço diferenciado.
Seria uma observação que cria nexos, que diz daquilo que observa, que faz
relações, que ouve atentamente. Para ele, cada ser é diferenciado, com seu
histórico e suas características próprias. Não levar isso em consideração é
clinicar de forma indiferente, estereotipada. Foucault, em seus textos, tem
sempre o cuidado de ressaltar a subjetividade, o sujeito, a possibilidade de um
cuidado de si, que é um conceito anterior ao “conhece-te a ti mesmo”, dos
gregos antigos. Em seu livro “O nascimento da clínica” ele diz que a luz não
está na coisa, mas no olhar sobre a coisa e que o visível (descrição
taxonômica) encobre o invisível (o indivíduo com suas subjetividades). Assim,
muitas vezes, o médico “contamina” o diagnóstico e, por consequência, a vida de
uma pessoa, pelo seu modo de ver as coisas e pelo seu hábito de categorizar e
“taxonomizar”.
Observamos, então, que, desde o século XVIII, a loucura aparece como uma patologia que o
médico competente, o especialista superinvestido de poder, deve dizer o que é e
como tratar, impondo uma verdade e um procedimento ao paciente. Este,
inversamente, é estigmatizado como um doente mental que nada sabe de sua doença
e nem sequer da realidade, e que, portanto, nada pode decidir sobre sua própria
situação, perdendo toda a autonomia sobre sua vida. No livro “Ecce Homo”
Nietzsche diz que a loucura é “a máscara para um saber desventurado, certo em
demasia”. Ele então devolve à loucura, ao menos à sua loucura, o direito à
fala, conferindo uma importância crucial ao discurso delirante: através dele é
a verdade, é a própria efetividade que se expressa. Contestando a pretensiosa
“objetividade” da psiquiatria, Nietzsche transfere para o próprio “paciente” o
poder de produzir a sua loucura e a verdade sobre ela.
Apesar de haver mudanças positivas, nos
últimos anos, dentro da psiquiatria e das formas de tratamento de doentes
mentais, o louco ainda é estigmatizado e segregado da sociedade. Em nossa
pesquisa observamos que dentre os doentes mentais diagnosticados como
esquizofrênicos muitos apresentam um discurso compreensível e, muitas vezes,
lúcido, mas despido de qualquer etiqueta ou preocupação com a repercussão que
esta fala pode produzir. Nosso exemplo mais expressivo é a Estamira, mulher de
62 anos de idade que vive no lixão de Gramacho, no Rio de Janeiro e personagem
principal documentário do fotógrafo Marcos Prado. O documentário narra a
vida de Estamira que começa a sofrer, constantemente, alucinações por conta das
marcas dolorosas da sua história, chegando a considerar-se como a visão
de cada um, o abstrato, e ainda acredita piamente saber tudo
sobre Deus, rotulando-o de o trocadilo, o esperto ao
contrário, atribuindo a si o poder de salvaguardar todas as coisas.
Estamira é portadora de uma percepção imprescindível, chegando a proferir
pensamentos que carregam uma máxima única em seu contexto de vida. Estamira
retrata em suas palavras não somente o estado caótico dos catadores de lixo, mas
também a insensibilidade das pessoas: “[...]às vezes é só resto, as vezes
vem, também, descuido!”. Ela não demonstra nenhuma preocupação com a
repercussão de seus dizeres e seu discurso é carregado de palavrões e
intensidade no tom da voz.
Estamira - Trecho do documentário no Youtube
Estranho, fora do comum, desusado, singular, esquisito, extravagante, excêntrico, misterioso, enigmático, anormal: todas essas acepções travestem os dizeres nas esquizofrenias, mas apenas a última acepção parece pesar mais na designação dos efeitos provocados em seus ouvintes e leitores na Psiquiatria, na Psicologia e, até, no senso comum. Nos dizeres nas esquizofrenias, eu sou excluído porque eu não entendo: ele é louco. No texto filosófico, eu sou excluído porque eu não entendo: ele é um gênio. São efeitos distintos sobre o outro que passam a ser incluídos na própria abordagem dos dizeres.
Estamira - Trecho do documentário no Youtube
Estranho, fora do comum, desusado, singular, esquisito, extravagante, excêntrico, misterioso, enigmático, anormal: todas essas acepções travestem os dizeres nas esquizofrenias, mas apenas a última acepção parece pesar mais na designação dos efeitos provocados em seus ouvintes e leitores na Psiquiatria, na Psicologia e, até, no senso comum. Nos dizeres nas esquizofrenias, eu sou excluído porque eu não entendo: ele é louco. No texto filosófico, eu sou excluído porque eu não entendo: ele é um gênio. São efeitos distintos sobre o outro que passam a ser incluídos na própria abordagem dos dizeres.
Uma dissociação radical, sem dúvida,
entre normal e anormal: aquilo que causa desconforto, por não poder ser
amarrado numa unidade de significação, torna-se alheio e, portanto, é colocado
numa posição externa, estrangeira, na qual não há compromisso com o dizer.
Quando o louco fala, o dizer que é a ruptura do dizer-padrão “normal” torna-se
um sintoma, um sintoma que tem que ser referido a uma doença.
No livro “A Razão e a Loucura”, Michel
Foucault diz: “Em meio ao mundo sereno da enfermidade mental, o homem moderno
deixa de se comunicar com o louco; por um lado, encontramos o homem razoável,
que encarrega o médico da tarefa de se ocupar da loucura e que não autoriza
outra relação senão a que pode ser estabelecida através da universalidade
abstrata da enfermidade; por outro, está o homem louco, que se comunica com o
razoável apenas por meio de uma razão igualmente abstrata, que é ordem,
constrangimento físico e moral, pressão anônima do grupo, exigência de
conformidade”.
2 comentários:
Bárbaro!!!! Sensacional!!!
Amo esse tipo de matéria!
Vou favoritar e ler com calma!!!
Está lindo o blog! O que precisar pode contar comigo.
Bjussssssssssss
Obrigada Mamis! vou postar mais coisas, toda semana...;)
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