Normalidade e anormalidade são questões centrais nos
debates sobre inclusão e exclusão à medida que as representações e discursos
que circulam com maior predominância no circuito cultural são aqueles que
dividem os sujeitos entre normais e anormais, atribuindo um juízo de valor pelo
qual os primeiros estão em vantagem sobre os segundos. Ao passo que faz
aparecer alguns sujeitos, inventando e nomeando suas existências, a modernidade
assume um maior poder e controle sobre as mentes e os corpos “desajustados”
através de práticas discursivas e não-discursivas.
A linguagem, produto do ser humano, determina aspectos e características de seu próprio criador. Portanto, se esse criador é alguém que ocupa uma posição de excluído, na sociedade, consequentemente, seu discurso é visto como anormal, sem importância, sem utilidade.
De acordo com diversos autores, o anormal não é, necessariamente, patológico, assim como a diversidade não é patológica. O portador de uma anomalia não pode ser comparado a si mesmo. Sua anomalia deve ser contraposta a outros indivíduos que apresentam características diferentes das suas, no aspecto observado.
O patológico sim, deve ser comparado a si mesmo. Para se determinar a existência ou não de uma patologia é necessário que haja um autorreferenciamento: só eu posso perceber se algo está desviando ou interferindo no curso normal e costumeiro da minha vida. Assim, busco no outro, diagnósticos ou formas de fazer voltar ao normal.
A verdade é que a noção de normalidade e anormalidade baseia-se numa referência normativa. É perigoso classificar o normal em torno do conceito de média, pois o que é média num local, não é em outro. Da mesma forma, o que é normal para um indivíduo ou grupo de indivíduos, pode não ser para outros.
Nietzsche dizia sim à doença, pois era parte da vida. A doença, nada mais é do que uma dimensão da saúde e da vida. Não há razão para dizer que a doença é menos vida que a saúde. No entanto, o olhar para o deficiente é um olhar pejorativo, que o classifica como sub humano, como não digno de voz ativa.
De acordo com Canguilhem, o normal teria um conceito cósmico ou popular (quando o "povo" sente que tem algo desigual ou não justo) e a normalidade seria identificada na recorrência.
Há uma tendência em se encaixar e enquadrar as pessoas em classes, em grupos. O enquadramento patológico é o mais cruel, talvez, pois há uma tentativa de convencer o outro de que ele sofre de algo e esse outro nem sempre reconhece esse algo do qual ele é acusado de sofrer, de possuir.
Ainda, na visão de Canguilhem
Normal é o termo pelo qual o século XIX iria designar o protótipo escolar e o estado de saúde orgânica. (...) Tanto a reforma hospitalar, como a reforma pedagógica exprimem uma exigência de racionalização que se manifesta também na política, como se manifesta na economia, sob a influência de um maquinismo industrial nascente que levará, enfim, ao que se chamou, desde então, normalização. (CANGUILHEM, 2002, p. 209-210).
Toda a sociedade requer medidas comuns, e o melhor exemplo é a linguagem. A modernidade da norma se dá através da articulação de regimes de saber e dispositivos materiais para as práticas de medida, que incluem ou excluem os indivíduos. A norma é a forma contemporânea de regulação social e os artefatos culturais, de um modo geral, funcionam como agentes de normalização. As identidades socialmente aceitas e valorizadas são também as representadas positivamente por esses artefatos e servem como modelo para regular nossos comportamentos e ações.
Segundo Ewald
Normalizar
é instituir a linguagem que lhes permitirá entenderem-se e formar sociedade.
Aliás, a acto essencial da normalização é provocar o acordo acerca desse
código, fazer com que se torne comum a todos, como o que isso subentende do
ponto de vista das maneiras de pensar e dos valores. (...) A normalização é,
portanto, a instituição de uma língua comum, língua perfeita da comunicação
pura que a sociedade industrial exigiria. (...) A normalização é uma maneira de
organizar esta solidariedade que faz de cada indivíduo o espelho e a
medida do outro (EWALD, 1993, p. 103-104).
À medida que as sociedades humanas instituem uma linguagem
comum, permitem aos indivíduos delimitar quem são os normais e os anormais.
Essa delimitação, entretanto, varia de uma época e de um espaço a outro. A norma
nega, suprime as identidades incômodas, as identidades deficientes,
incompletas, patológicas e negativas, em que corpos deficientes se encontram.
Sacks diz que deveria ser central,
nos estudos sobre as patologias, a questão da relação do sujeito com sua
doença, o caráter pessoal de um caso, já que uma doença nunca é uma simples perda
ou excesso; existe sempre uma reação, por parte do organismo ou indivíduo
afetado, para restaurar, substituir, compensar e preservar sua identidade.
Essa tentativa de preservação da identidade pode ser observada no discurso de pessoas portadoras de psicoses, como a esquizofrenia. Para Lacan, as psicopatologias são fenômenos essencialmente articulados à personalidade. Em 1956 ele sustenta mais a posição psicogenética, passando a defender que as psicoses, se de fato devem ser pensadas a partir de sua relação com o campo do sentido, dizem respeito ao campo da fala e da linguagem.
Freud constata que a mente é afetada e governada, em grande parte, por processos linguísticos.
A patologia mental tem sua formação articulada aos entrechoques de uma conjunto contraditório de enunciados carregados de tonalidade afetiva, que apontam para múltiplos sentidos, e não pode ter sua lógica explicitada senão na medida em que se elucidam os significados, as intencionalidades envolvidas em tais conflitos. Daí resulta a relação linguagem-identidade do indivíduo emissor desse discurso.
Para os delirantes psicóticos nada ao seu redor acontece que não seja diretamente envolvido com suas pessoas, dirigido a eles. Assim, Lacan conclui que, a fim de apreender os determinantes das psicoses, antes de tudo, o investigador deve se interrogar acerca do modo pelo qual o psicótico usa a fala.
O sujeito psicótico fala com o seu eu. Os eus, ligados ao muro da linguagem, se comunicam, caracterizando a fala considerada "vazia", pois não há um direcionamento a um interlocutor externo, o outro.
Dessa forma, nas psicoses é comum encontrar distúrbios da linguagem, pois o sujeito psicótico tem uma relação diferenciada com a linguagem, chegando mesmo a criar uma "língua" própria, muitas vezes evidenciada pelos neologismos, tão comuns no discurso psicótico.
Nas palavras da Drª Nise da Silveira:
"O esquizofrênico dificilmente consegue comunicar-se com outro. Falham os meios habituais de transmitir experiências. E é um fato que o outro também recua diante desse ser enigmático. será preciso que este outro esteja seriamente movido pelo interesse de penetrar no mundo hermético do esquizofrênico. Será preciso constância, paciência e um ambiente livre de qualquer coação."
Tendo todos esses fatores em vista, penso que terei um árduo caminho a percorrer nas minhas pesquisas que permearão o meu mestrado e doutorado. No entanto, apesar das dificuldades e limitações, acredito que terei êxito, pelo menos no que diz respeito à compreensão desse mundo discursivo único, de pessoas portadoras de esquizofrenia. Meu êxito será devido ao extremo interesse que tenho nessa área e na minha vontade absurda em penetrar e aventurar-me nesses mundos caóticos, psicóticos, viscerais e inspiradores da esquizofrenia.
Referências:
CANGUILHEM, Georges. O normal e o
patológico. 5 ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2002.
EWALD, François. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Veja, 1993.
SACKS,
O. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
THOMA,
Adriana da Silva. Entre normais e anormais: invenções que tecem inclusões e
exclusões das alteridades deficientes. In: PELLANDA, N.
M. C.; SCHLÜNZEN, E.; SCHLÜNZEN, K.
(Orgs.). INCLUSÃO DIGITAL: tecendo redes afetivas/cogntivas. Rio de Janeiro: DP&A,
2005. (ISBN: 85-7490-301-9).
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