Psiquiatria e políticas públicas em
saúde mental:
Psiquiatria é o ramo da medicina que
trata dos transtornos mentais. A prevalência anual dos transtornos mentais na
população maior de 18 anos foi estimada em 18,5% no Brasil, em consonância com
resultados da literatura internacional.
Quanto ao impacto dos transtornos
mentais sobre a saúde da população, o estudo Carga Global de Doença avaliou que
o conjunto das afecções mentais e neurológicas responde por 43% de toda a
incapacitação gerada pelo conjunto das doenças e agravos à saúde nas Américas.
Do ponto de vista da saúde coletiva, a perda de anos de vida saudáveis por
morte precoce ou incapacitação provocada pela depressão é maior que aquelas por
doenças isquêmicas cardíacas ou cerebrovasculares.
O fato de o diagnóstico em psiquiatria apresentar
contrastes em relação ao diagnóstico no ambiente geral da medicina não faz dele
algo arbitrário e incomunicável. Pelo contrário, tendo em mente essas singularidades,
o clínico pode e deve investigar o patrimônio mental de seu paciente, tendo
meios para a realização de bom diagnóstico psiquiátrico. A importância da
abordagem psiquiátrica, realizada pelo clínico geral, sustenta-se por
relevantes dados epidemiológicos.
Apesar disso, tanto no nível das
políticas públicas de saúde quanto na atuação individual dos médicos, a
significância reservada aos transtornos mentais é inferior à da epidemiologia.
Assim, os orçamentos públicos destinados à saúde mental dificilmente
ultrapassam 3% do total de recursos para a Saúde e cerca de metade dos
portadores de transtornos mentais não é diagnosticada pelos seus médicos
generalistas. Paradoxalmente, são os médicos generalistas os responsáveis pela
maioria das prescrições de benzodiazepínicos. Isso denota que os generalistas
respondem, de alguma maneiras, à grande demanda de pacientes com queixas psíquicas,
mas ainda não utilizam sistematicamente os melhores instrumentos clínicos
disponíveis.
O intercâmbio e a divisão de
responsabilidades entre generalistas e especialistas são realidades novas e
cada vez mais necessárias no campo da saúde mental. A Organização Mundial da
Saúde coloca a incorporação da atenção à saúde mental no repertório clínico dos
médicos generalistas como fundamental para a redução da carga dos transtornos
mentais sobre a saúde da população. No âmbito das clínicas, pode-se dizer que a
atenção à dimensão psíquica do sofrimento é um dos elementos que mobilizam o
paciente a procurar um médico, ainda que muitas vezes essa demanda não se
explicite. Ignorá-la empobrece o contato com o paciente e compromete sua
eficácia clínica.
Há uma grande contingência de pessoas
portadoras de doenças mentais, que cometeram crimes ou estão de alguma forma
sendo monitorados/custodiados pelo sistema judiciário. Existem hoje no País 23
Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, nos quais se encontram pouco
mais de 4 mil pessoas reclusas. O fato de estarem sob o olhar simultâneo de
duas áreas – a Justiça e a Saúde – não tem significado maior atenção para essas
entidades e seus internos. Não há como alegar surpresa: numa sociedade que
pouco interesse demonstra pelo destino dos loucos e, menos ainda, pelo dos
criminosos, não é de estranhar que uma instituição criada para loucos e
criminosos permaneça esquecida na maior parte do tempo.
As propostas contemporâneas de reforma
na assistência psiquiátrica surgiram em meados da década de 1950 nos Estados
Unidos e na Europa, no período posterior à Segunda Guerra Mundial. As denúncias
de atos violentos, abandono, isolamento e cronificação dos doentes, cada vez
mais frequentes nos asilos, deixaram clara a limitação das instituições hospitalares
para alcançar a finalidade de tratamento a que se propunham. Ao mesmo tempo, a
pressão por reformas sociais e sanitárias e os movimentos pelos direitos civis e
humanos impuseram a redefinição dos modelos de assistência à saúde.
Por todos esses aspectos, a sociedade começou
a exigir novas formas de tratamento para os portadores de transtornos mentais. Deu-se
início, então, em vários países, aos movimentos de desinstitucionalização, que
propunham a transferência dos cuidados psiquiátricos do nível hospitalar para
os serviços fundamentados na comunidade.
De fundamental importância, nesse processo,
foi a descoberta dos neurolépticos em 1950, possibilitando a reinserção social
e familiar de grande parte dos pacientes hospitalizados.
Nos últimos 40 anos, o paradigma
dominante para o entendimento dos transtornos mentais graves tem evoluído do
modelo psicossocial, que abordava fatores, como influências parentais e conflitos
intrapsíquicos, para o atual modelo biopsicossocial, que enfatiza o interrelacionamento
entre fatores biológicos e psicossociais. Paralelamente, o enfoque terapêutico
também vem apresentando mudanças.
Assim,
nos anos 1960 e 1970, o foco do tratamento residia no controle dos sintomas, e
o objetivo era auxiliar as pessoas a se manterem assintomáticas e fora do
hospital.
Na década de 1980, a atenção se volta
para a reabilitação, com o propósito de auxiliar o paciente a se inserir na
sociedade, ter emprego, estudar, ser pai ou cônjuge. E desde os anos 1990, a
ideologia dos cuidados comunitários tem mantido o tema da reabilitação,
incluindo o objetivo de trazer, ao reinserido social, independência, capacidade
de autogerenciamento e melhor qualidade de vida.
Os primeiros delineamentos da reforma
psiquiátrica brasileira iniciaram-se na década de 1970, principalmente na
segunda metade, com a emergência de críticas ao caráter privatizante da
política de saúde governamental e a ineficiência da assistência pública em
saúde. Surgiram, também, denúncias de fraude no sistema de financiamento dos
serviços e, de maior importância, as denúncias de abandono e maus-tratos que
ocorriam nos hospitais psiquiátricos do país.
Sob a influência dos movimentos
reformistas que ocorriam na Europa e nos Estados Unidos, vários setores da
sociedade civil brasileira foram mobilizados em favor da luta pelos direitos
dos pacientes. A reflexão sobre a loucura passou a integrar o quadro de
discussões das universidades, dos meios intelectuais e dos profissionais de instituições
psiquiátricas, envolvendo posteriormente outros setores da sociedade.
A 1ª e a 2ª Conferência Nacional de Saúde
Mental (CNSM), realizadas em 1987 e 1992, respectivamente, junto com a regulamentação
do Sistema Único de Saúde (SUS), no início da década de 1990, possibilitaram a
construção e a experimentação de novas modalidades assistenciais em saúde
mental.
O governo começou a propor alternativas
de tratamento com a publicação de diversas portarias ministeriais (Portarias no
189/1991 e 224/1992, por exemplo) para reorganização da assistência e
regulamentação do financiamento de serviços de natureza extra-hospitalar, como
os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e os Lares Abrigados.
Em 1989, foi apresentado ao Congresso
Nacional um polêmico projeto de lei que previa a extinção gradativa dos hospitais
psiquiátricos e a regulamentação dos direitos dos portadores de transtornos
mentais. A demora na sua aprovação fez com que vários estados brasileiros, na
década de 1990, regulamentassem a assistência psiquiátrica no limite dos seus
territórios.
No âmbito continental, a Declaração de
Caracas, de 1991, aprovada durante a Conferência para a Reestruturação da
Atenção Psiquiátrica, propôs que os serviços comunitários fossem o componente
principal dos cuidados em saúde mental, reduzindo o papel dominante do hospital
na prestação de serviços.
Todos esses fatores contribuíram e
resultaram na promulgação da Lei Federal no 10.216, em 2001, que dispõe sobre a
proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais.
A atual política nacional de saúde
mental consiste da redução progressiva dos leitos psiquiátricos e da ampliação e
do fortalecimento da rede extra-hospitalar, constituída principalmente pelos
CAPS e pelos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs).
Outras propostas compreendem a inclusão
das ações de saúde mental na atenção básica, a atenção integral a usuários de
substâncias psicoativas e o aumento da cobertura do programa “De volta para
casa”.
Este programa, criado em 2003, permite
ao egresso de longa internação em instituições psiquiátricas receber
mensalmente um auxílio-reabilitação psicossocial, no valor de 240 reais. Atualmente
existem cerca de mil CAPS e mais de 470 residências terapêuticas distribuídas
em muitos municípios brasileiros.
Em relação aos leitos hospitalares,
houve redução de 56 mil para 44 mil, no período de 2000 a 2005. Estima-se que,
no Brasil, ainda existam cerca de 14 mil pacientes que possam ser
desospitalizados e residir na comunidade. Esse processo vem sendo questionado
por alguns setores da sociedade brasileira. Discute-se a carência de estudos de
avaliação com base epidemiológica e o acompanhamento das políticas propostas,
que deveriam contar com estratégias efetivas de prevenção e garantir assistência
de qualidade, o que, de fato, poderia reduzir a demanda por leitos hospitalares.
Defende-se também a criação de uma rede de atenção integral em saúde mental que não exclua o hospital psiquiátrico, e que atenda às necessidades dos pacientes em todos os níveis de atenção.
Defende-se também a criação de uma rede de atenção integral em saúde mental que não exclua o hospital psiquiátrico, e que atenda às necessidades dos pacientes em todos os níveis de atenção.
O psiquiatra:
De acordo com Eduardo de Carvalho Rocha,
o psiquiatra sempre foi visto como um sujeito sombrio, esquisito, estranho,
tratado com um misto de reverência e de escárnio, e dele sempre se procurou
manter certa distância, já que sua presença atualizava o estigma da loucura,
dos atos insensatos, da segregação.
Os alienistas do século XIX, ao criarem
os primeiros lugares de tratamento, foram estabelecendo as bases do saber
psiquiátrico, buscando através da observação detalhada dos pacientes delimitar
os fundamentos dessa ciência. A psiquiatria deu início a seu processo de
constituição num tempo em que o homem era prisioneiro de psicologias que
consideravam a existência de uma mente como uma tela onde a alma se projetava.
A verdade da mente eram os valores morais e religiosos. Era deles que emanava o
próprio funcionamento mental, se é que podemos falar de “mental” naquela época.
Nesse sentido, os primeiros psiquiatras
se inscrevem postulando a necessidade de se forjar uma linguagem própria para
apreender o objeto da psiquiatria. Esse objeto precisaria ser formalizado em
termos novos, não mais aqueles dos escolásticos, mas como uma ciência natural,
isto é, com termos que estivessem sujeitos a operações de verificação e
contestação metódica. Não mais como uma visão de mundo, mas como uma ciência. É
essa posição que retira a loucura do lugar do senso comum, e a circunscreve à
Medicina, com todas as consequências que daí resultaram. O que estava em jogo
era compreender ou explicar a própria irracionalidade, os fracassos da razão,
pelo funcionamento de um aparato próprio, o aparelho psíquico, e de suas
relações com o corpo. O que passa assim a responder pela mente não é mais a
alma e sim o jogo de interações de idéias, de circuitos nervosos, de processos
de comunicação.
Então a psiquiatria se autoriza de um
mandato social que estabelece que as coisas devem funcionar, que os homens
devem estar aptos a exercer sua liberdade num mundo sujeito a uma nova ordem,
aquela instituída pela Revolução Francesa e, progressivamente, comandada pela
ciência e pelo capitalismo. Se não puderem exercê-la que, pelo menos, não
perturbem demais a vida dos outros. Mas, de todo modo, a assunção de atos, isto
é o exercício da vontade, passa a estar condicionada para esse novo homem por
uma rede simbólica que funciona de maneira própria, tem ciência, e não é mais
dirigida por valores universais herdados ou recebidos diretamente de instâncias
divinas.
O homem se libera de Deus para se
verificar como sujeito, como assujeitado a operações que o produzem. Essa
liberação traz consigo a ideia de conflito, de traumatismo, no advento desse
homem, e é interessante notar como, nesses momentos germinais da psiquiatria,
encontramos nossos alienistas refletindo sobre o funcionamento mental e
considerando o conflito entre idéias como o modo que acabava conduzindo ao
adoecimento mental. Primeiro eram as causas morais que repercutiam no sistema
nervoso, no corpo, portanto; depois, eram as ideias em conflito que geravam o
desequilíbrio e o transtorno.
A psiquiatria se estabeleceu no momento
em que foi concebido um sujeito livre que representava a si mesmo, e sua
nosografia e foi organizada em torno das relações desse sujeito com o mundo,
isto é, em torno das formas peculiares que ele foi levado a assumir num jogo
social de múltiplas determinações. Os psiquiatras ganham existência para, a
partir daí, fazer o trabalho de catalogação dessas formações e, no bojo dessa
investigação, se encontraram com quadros que mostravam uma estabilidade, e
assim nomearam a doença mental. Não uma única, mas diversos quadros que foram
apreendidos e descritos em quase sua totalidade nesse período dos clássicos.
Apesar da diversidade, e das variadas
interpretações e explicações, essa prática instituiu uma discursividade que
sempre esteve referida aos fatos que rompem com o discurso comum, sejam eles
fatos de discurso propriamente ditos, ou atos, como suicídio, assassinatos,
abusos físicos, alterações de humor, entre outros. O que sempre demarcou essa
discursividade é o fato de ela dizer respeito ao que está em discordância, em
default, com o discurso comum. Não exclusivamente uma discordância de conteúdo,
semântica, mas essencialmente aquela de cunho formal, sintático. O nascimento
da psiquiatria trouxe como consequência a emergência, no social, do louco como
um ser passível de inscrição em sua diferença, como aquele que frequenta o
discurso de forma peculiar, ou melhor, como aquele que não frequenta o discurso
comum senão de forma problemática. O mais importante é que isso constitui uma
discursividade porque pode ser escrita, formulada.
Bem, os tempos mudaram, assim como aquele
discurso que começava a nascer expandiu-se tanto que passou a reger o laço
social. Daí que hoje os psiquiatras se perguntam se estão autorizados pelas
mesmas razões de nossos antecessores. Por exemplo, quando os psiquiatras passam
a frequentar os jornais e tevês como conselheiros do comportamento, ainda se
trata do mesmo mandato e da mesma resposta que antes?
Vejamos algumas das diferenças. No final
do século XVIII e início do XIX, fundou-se um campo cuja fronteira foi
estabelecida ali mesmo onde os fenômenos de exclusão se articularam à
linguagem, à relação do homem com sua própria fala. Isso possibilitou o
isolamento de várias situações clinicamente diferenciadas em que foi possível
reconhecer o funcionamento fisiológico da linguagem e sua dominância sobre as
chamadas funções intelectuais, tais quais a inteligência, o raciocínio, o
juízo, a afetividade; em suma, sobre o discurso comum, o do bom senso.
A psiquiatria e, posteriormente, a
psicanálise retiraram do eu o centro
da vida mental, o que quer dizer, colocaram em questão esse bom senso. A
primeira, ao isolar formações psicopatológicas que demonstravam um
funcionamento não condicionado pelas categorias de identificação, unidade,
síntese; a segunda, ao revelar-nos no inconsciente a função do sem-sentido. É
bem verdade que ambas “reabilitaram” o reino do eu tanto pelo cognitivismo como pela psicologia do ego. De qualquer
modo, o real da loucura recebeu um lugar simbólico que não a dissolvia no
discurso comum, ao contrário, a mantinha guardada, como em reserva dessa
impossibilidade de reduzi-la ao funcionamento da realidade. O movimento da
reforma vai incidir precisamente sobre essa reserva, propondo uma outra forma
de tratar esse real, isto é, propondo outros dispositivos de tratamento desse
real e questionando as próprias relações da sociedade com esse discurso
excluído.
Agora, nesse final do séc. XX e início
de XXI, vivemos um tempo de dissolução de fronteiras, de unificação de
linguagens e de globalização de mercados, diverso daquele período inicial,
quando o discurso comum era agenciado pela palavra dos políticos e de alguns
mestres — mestres e não professores é bom que se diga. Hoje ele é agenciado
pelas corporações e pela imagem, e não mais pela palavra. E, entre as
características desse discurso, está a dissolução das diferenças, o tratamento
de todos como iguais e com plenos direitos para viver da maneira mais
confortável e satisfatória, e também a dissolução das barreiras entre normal e
patológico. Isso pode acabar fazendo com que nos deixemos levar por esse
comando, e que tratemos aquele real da loucura, que antes tinha uma inscrição,
como uma questão administrativa, que pode ser absorvida no social sob uma
eficiente gestão econômica e política.
Nesse contexto, quais serão, atualmente,
o mandato e as formas de legitimação da psiquiatria?
Apesar de todo o ideal científico,
naturalista e mecanicista dos primeiros tempos, os psiquiatras clássicos não
foram insensíveis à relação entre loucura e linguagem. A bem da verdade, vários
deles escreveram extensos trabalhos sobre o assunto, como foi o caso de
Kahlbaum, Bleuler, Kraepelin, Seglas, entre outros, marcando as
particularidades discursivas, linguageiras, das psicoses. Todo esse arcabouço
clínico foi erguido em torno de fenômenos como neologismos, mutismo,
pensamentos automáticos, frases interrompidas, ordens ouvidas, delírios de
diferentes temas, roubos e interrupções de pensamentos, entre vários outros. A
clínica que sustentou esse trabalho foi a da observação meticulosa, das
anotações, e de algumas interpretações. Muitos dizem que essa clínica era
orientada pelo olhar, mas talvez tenha sido principalmente pela escuta e pela
escrita. Escreviam muito o que ouviam e viam, e, à medida que iam pondo as
coisas no papel, isso ia tecendo textos. Era uma clínica do relato, mas não do
relato testemunhal de quem apenas observa um acontecimento, e sim do relato de
uma articulação entre o que o paciente dizia ou agia e aquilo que interrogavam,
mas principalmente era um escrito. Para alguns clínicos dessa época, só uma
entrevista cuidadosamente conduzida poderia fornecer os elementos do quadro,
sem a qual a psicose passava despercebida ou disfarçada, o que não quer dizer
inexistente.
Então a psiquiatria se forjou nessa
práxis de linguagem em que o clínico foi estabelecendo a moldura, o
enquadramento, para que se evidenciassem os quadros onde os diversos fracassos
de funcionamento no discurso comum pudessem aparecer.
O que isso quer dizer?
Que esse discurso comum não é fechado,
não é completo, não se realiza sem problemas, e até mais, que se realiza sob
determinações absolutamente estranhas ao nosso conhecimento, à nossa
racionalidade. As psicoses apontam para o limite desse discurso. Essa tem sido
a obra da psiquiatria: demonstrar em sua clínica os limites do discurso comum,
o que quer dizer que ele não pode tudo, que ele não é mestre absoluto. Isso
quer dizer que o psicótico é um revolucionário? De maneira alguma, isso quer
dizer somente que ele repercute os limites de um discurso, mas isso não é o
mesmo que colocá-lo em posição de revolucioná-lo.
Voltando à atualidade, será que podemos
continuar sustentando que essa função da psiquiatria continua operando? Será
que o psiquiatra ainda é aquele que vela para que esses limites sejam
reconhecidos, identificados, levados em conta, respeitados?
É bem verdade que por muito tempo os
próprios psiquiatras confundiram esse estado de exclusão, de fora do discurso
comum, como tendo um único destino, ou seja, o da exclusão da vida social, mas
é preciso ter claro que uma precede a outra. É a posição de exclusão no
discurso que é causa da exclusão social e não vice-versa, e considerar a
questão ao inverso é anular, é dissolver a psicose ao discurso comum. Essa
diferenciação é crucial para o futuro da psiquiatria e é justamente isso que
parece estar em questão na atualidade, pois as coisas vêm se arranjando de modo
a apagar essas diferenças, de modo a considerar que não há nada mais a avançar
no terreno da psicopatologia e da clínica que não seja o desenvolvimento de
drogas ou de exercícios cognitivos de conscientização.
Com isso, o psicótico vai ficando cada
vez mais “normal” e adaptável ao discurso comum. Aí está uma coisa com que
quase todos iriam concordar, não é mesmo? Afinal, não seria isso a vitória da
ciência sobre o obscurantismo? Uma vitória do saber e da política de direitos
humanos, em que uma sociedade mais justa e tolerante finalmente estaria
disposta a não excluir seus loucos. O problema é o preço que se vai pagar por
essa “normalização”, preço este que pode acabar tendo como consequência uma
nova forma de exclusão, uma exclusão
normalizada. Nos primórdios, coube aos psiquiatras inventar os operadores e
os dispositivos para se lidar com o estranhamento que a loucura produzia no
social. Agora, parece que eles estão cada vez mais constrangidos a apagar
qualquer manifestação de estranhamento.
A que está constrangido o psiquiatra
atualmente?
Existir é problemático, difícil, penoso,
desagradável, trabalhoso, incompreensível.
Estão constrangidos a saber, a explicar,
tudo o que acontece no cotidiano. Por que amamos, por que morremos, por que nos
tornamos pais, ou neuróticos, ou psicóticos. Tudo tem um saber a que se pode
recorrer, e os psiquiatras estão constrangidos, por esse imperativo do atual
discurso comum, a saber cada vez mais.
“Saibam mais” sobre o cérebro, sobre a
infância, sobre os modos de raciocínio, sobre o pensamento psicótico,
neurótico, normal etc...
Saibam mais e transformem esse saber em
mercadoria a ser distribuída pelos jornais, pela tevê, pela internet...
Mas os psiquiatras podem fazer um pouco
mais do que apenas se submeterem a esse imperativo, e uma dessas coisas é
continuar tentando escrever, formulando os tipos clínicos que passam a dominar
nossa atualidade social. Em vez de ficarem dormindo, ou obedecendo cegamente a
esse comando, eles deveriam se pôr a elucidar a relação dos quadros clínicos
que hoje prevalecem, tais como as toxicomanias, as depressões, os transtornos
alimentares, a paranóia social, com o tipo de laço social dominante.
Instituições e internações:
Os estabelecimentos sociais ou
instituições são locais, tais como salas, conjuntos de salas, edifícios ou
fábricas, nos quais ocorrem atividades de determinado tipo.
As instituições totais de nossa
sociedade podem ser, grosso modo, enumeradas em cinco agrupamentos, de acordo
com Erving Goffman.
Em primeiro lugar, há instituições
criadas para cuidar de pessoas que, segundo se pensa, são incapazes e
inofensivas; nesse caso estão as casas para cegos, velhos, órfãos e indigentes.
Em segundo lugar, há locais
estabelecidos para cuidar de pessoas consideradas incapazes de cuidar de si mesmas
e que são também uma ameaça à comunidade, embora de maneira não-intencional;
sanatórios para tuberculosos, hospitais para doentes mentais e leprosários.
Um terceiro tipo de instituição é
organizado para proteger a comunidade contra perigos intencionais, e o
bem-estar das pessoas assim isoladas não constitui o problema imediato:
cadeias, penitenciárias, campos de prisioneiros de guerra, campos de
concentração etc.
Em quarto lugar, há instituições
estabelecidas com a intenção de realizar de modo mais adequado alguma tarefa de
trabalho, e que se justificam apenas através de tais fundamentos instrumentais:
quartéis, navios, escalas internas, campos de trabalho, colônias e grandes
mansões.
Finalmente, há os estabelecimentos
destinados a servir de refúgio do mundo, embora muitas vezes sirvam também como
locais de instrução para os religiosos como abadias, mosteiros, conventos e
outros claustros.
Em primeiro lugar, as instituições
totais perturbam ou profanam exatamente as ações que na sociedade civil têm o papel
de atestar, ao ator e aos que estão em sua presença, que têm certa autonomia no
seu mundo. A impossibilidade de manter esse tipo de competência executiva adulta,
ou, pelo menos, os seus símbolos, pode provocar no internado o horror de
sentir-se radicalmente rebaixado no sistema de graduação de idade.
Uma certa margem de comportamento
expressivo escolhido pela pessoa - seja de antagonismo, afeição ou indiferença
- é um símbolo de escolha pessoal. Esta prova da autonomia da pessoa é
enfraquecida por algumas obrigações específicas, por exemplo, precisar escrever
urna carta semanal para a família, ou ser obrigado a não exprimir mau humor. Ainda
mais enfraquecida quando essa margem de comportamento é usada como prova do
estado psiquiátrico, religioso ou de consciência política da pessoa.
AIgumas comodidades materiais são
provavelmente perdidas pela pessoa ao entrar numa instituição total – por exemplo,
uma “cama macia'" ou o “silencio à noite”. A perda desse conjunto de
comodidades tende a refletir também uma perda de escolha pessoal, pois o
indivíduo procura consegui-las no momento em que tem recursos para isso.
Outra expressão clara de ineficiência pessoal
nas instituições totais pode ser encontrada no uso da fala pelos internados. Uma
suposição do emprego de palavras para transmitir decisões a respeito da ação é
que quem recebe uma ordem é visto como capaz de receber uma mensagem e agir
para completar a sugestão ou a ordem. Ao executar por si mesmo o ato, pode
conservar certo vestígio da noção de que tem liberdade. Ao responder a uma
pergunta com suas palavras, pode conservar a noção de que é alguém a ser
considerado, ainda que muito superficialmente. E como entre ele e os outros só
passam palavras, consegue manter pelo menos distância física com relação a
eles, por mais desagradável que seja a ordem ou a afirmação.
O
internado numa instituição total pode ver que não tem sequer esse tipo de
distância protetora e ação pessoaI. Sobretudo nos hospitais para doentes mentais
e nas prisões para doutrinação política, as afirmações que faz podem ser desprezadas
como simples sintomas, e a equipe diretora pode prestar atenção aos aspectos não-verbais
de sua resposta.
Multas vezes é colocado em posição tão
secundária que não recebe sequer pequenos cumprimentos, para não falar em
atenção ao que diz. O internado pode também descobrir o emprego de um tipo retórico
de linguagem. Algumas perguntas - por exemplo, "Você já tomou banho?"
ou "Você colocou as duas meias?" - podem ser acompanhadas pelo exame
simultâneo que fisicamente revela os fatos, o que torna supérfluas as
perguntas. Em vez de ouvir dizer que deve ir para certa direção em determinado
ritmo de andar, ele pode ser levado pelos guardas, ou puxado (no caso de
doentes mentais amarrados) ou levado aos trambolhões. E, finalmente, o
internado pode descobrir a existência de duas linguagens, e que os fatos de
disciplina de sua vida são traduzidos, pela equipe diretora, em frases ideais que
ridicularizam o uso normal da linguagem.
Entre os internados de murtas instituições
totais, existe um intenso sentimento de que o tempo passado no estabelecimento
é tempo perdido, destruído ou tirado da vida da pessoa; é tempo que precisa ser
"apagado"; é algo que precisa ser "cumprido",
"preenchido" ou "arrastado" de alguma forma.
Nas pensões e nos hospitais para doentes
mentais, uma afirmação geral quanto à adaptação da pessoa à instituição pode
ser apresentada através da maneira de "passar o tempo": se isso e coisa
penosa ou leve.
Este tempo é algo que foi posto entre parênteses
na consciência constante, e de uma forma que dificilmente se encontra no mundo
externo. Por isso, o internado tende a sentir que durante a sua estada obrigatória
- sua sentença - foi totalmente exilado da vida.
Este sentimento de tempo morto
provavelmente explica o alto valor dado às chamadas atividades de distração isto
é, atividades intencionalmente desprovidas de seriedade, mas suficientemente
excitantes para tirar o participante de seu "ensinamento", fazendo-o
esquecer momentaneamente a sua situação real. Se se pode dizer que as
atividades usuais nas instituições totais torturam o tempo, tais atividades o
matam misericordiosamente. Toda instituição total pode ser vista como urna
espécie de mar morto, em que aparecem pequenas ilhas de atividades vivas e
atraentes. Essa atividade pode ajudar o indivíduo a suportar a tensão psicológica,
usualmente criada pelos ataques ao eu.
Frequentemente as instituições totais
afirmam sua preocupação com a reabilitação, isto é, com o restabelecimento dos
mecanismos autorreguladores do internado, de forma que, depois de sair,
manterá, espontaneamente, os padrões do estabelecimento.
Na realidade, raramente se consegue essa
mudança, e, mesmo quando ocorre mudança permanente, tais alterações
dificilmente são as desejadas pela equipe dirigente.
Tradicionalmente, o termo carreira tem sido reservado para os que
esperam atingir os postos ascendentes de uma profissão respeitável. No entanto,
o termo está sendo cada vez mais usado em sentido amplo, a fim de indicar
qualquer trajetória percorrida por uma pessoa durante sua vida. Aceita-se a
perspectiva da história natural: os resultados singulares são esquecidos,
considerando-se as mudanças temporais que são básicas e comuns aos
participantes de uma categoria social, embora ocorram de maneira independente em
cada um deles.
Essa carreira não é algo que possa ser brilhante
ou decepcionante; tanto pode ser um triunfo quanto um fracasso. A categoria
"doente mental" aqui será entendida em um sentido sociológico
rigoroso. Nesta perspectiva, a interpretação psiquiátrica de uma pessoa só se
torna significativa na medida em que essa interpretação altera o seu destino social
- uma alteração que se torna fundamental em nossa sociedade quando, e apenas
quando, a pessoa passa pelo processo de hospitalização.
As pessoas que se tornam pacientes de
hospitais para doentes mentais variam muito quanto ao tipo e grau de doença que
um psiquiatra lhes atribuiria, e quanto aos atributos que os leigos neles
descreveriam. No entanto, uma vez iniciados nesse caminho, enfrentam algumas
circunstâncias muito semelhantes e a elas respondem de maneiras muito
semelhantes. Como tais semelhanças não decorrem de doença mental, parecem
ocorrer apesar dela. Por isso, é um tributo ao poder das forças sociais que o
status uniforme de paciente mental possa assegurar, não apenas um destino comum
a um conjunto de pessoas e, finalmente, por isso, um caráter comum, mas que essa
reelaboração social possa ser feita com relação ao que é talvez a mais
irredutível diversidade de materiais humanos que pode ser reunida pela
sociedade.
De forma semelhante, o estudioso de
hospitais psiquiátricos pode descobrir que a loucura ou o "comportamento
doentio" atribuídos ao doente mental são, em grande parte, resultantes da
distância social entre quem lhes atribui isso e a situação em que o paciente
está colocado, e não são, fundamentalmente, um produto de doença mental.
De um ponto de vista popular ou
naturalista, a carreira do doente mental cai em três fases principais: o
período anterior à admissão no hospital, a que Goffman denomina a fase de
pré-paciente; o período no hospital, denominado fase de internamento; o período
posterior à alta no hospital que, quando ocorre, é denominada fase de ex-doente.
Cada carreira moral, e, atrás desta,
cada eu, se desenvolvem dentro dos
limites de um sistema institucional, seja um estabelecimento social - por
exemplo, um hospital psiquiátrico - seja um complexo de relações pessoais e
profissionais. Portanto, o eu pode
ser visto como algo que se insere nas disposições que um sistema social
estabelece para seus participantes. Neste sentido, o eu não é uma propriedade da pessoa a que é atribuído, mas reside no
padrão de controle social que é exercido pela pessoa e por aqueles que a
cercam. Pode-se dizer que esse tipo de disposição social não apenas apóia, mas
constitui o eu.
A carreira moral do doente mental tem um
interesse singular; pode exemplificar a possibilidade de que, ao tirar as
vestimentas do antigo eu - ou ter
suas vestes arrancadas - a pessoa possa não sentir a necessidade de uma nova
roupa e uma nova audiência diante da qual se vista. Ao contrário, pode
aprender, pelo menos durante certo tempo, a apresentar, diante de todos os grupos,
as artes amorais do despudor.
O hospital psiquiátrico constitui um
caso específico de estabelecimentos em que a vida íntima tende a proliferar. Os
doentes mentais são pessoas que, no mundo externo, provocaram o tipo de
perturbação que fez com que as pessoas próximas a elas as obrigassem, física,
se não socialmente, à ação psiquiátrica. Muitas vezes essa perturbação estava
ligada ao fato de o "pré-paciente" ter praticado impropriedades
situacionais de algum tipo, ter apresentado conduta fora de lugar no ambiente. É
essa má conduta que traduz uma rejeição moral das comunidades, dos
estabelecimentos e das relações que têm o direito de exigir a lealdade da
pessoa.
A estigmatização como doente mental e a
hospitalização involuntária são os meios pelos quais respondemos a essas
ofensas contra a adequação. A persistência do indivíduo na manifestação de
sintomas depois de entrar no hospital, e sua tendência para criar sintomas
adicionais como resposta inicial a essa nova situação, já não lhe podem servir
como expressões de desafeto.
Do ponto de vista do paciente, o fato de
recusar-se a trocar uma palavra com a equipe dirigente ou com os outros
pacientes pode ser uma prova muito boa de rejeição da interpretação que a
instituição dá do que e de quem ele é; no entanto, a administração superior
pode considerar essa expressão de alienação como exatamente o tipo de
sintomatologia que a instituição deve tratar, e como o melhor tipo de prova de
que o paciente deveria estar onde agora se acha colocado.
Em resumo, a hospitalização psiquiátrica
previne todas as manobras do paciente, e tende a tirar dele as expressões
comuns através das quais as pessoas se recusam a aceitar as organizações -
insolência, silêncio, observações em voz baixa, ausência de cooperação,
destruição maldosa de decoração interior, e assim por diante; tais sinais de
desafeição são entendidos como sinais da adequação da ligação da pessoa com a instituição.
Sob tais condições, todos os
ajustamentos são primários. Além disso, aí encontramos um círculo vicioso. As
pessoas colocadas nas enfermarias "ruins" verificam que recebem muito
pouco equipamento - suas roupas podem ser retiradas todas as noites, os
materiais de recreação podem ser escondidos, e como mobília têm apenas cadeiras
e bancos pesados de madeira. Os atos de hostilidade contra a instituição
precisam valer-se de recursos limitados e inadequados - por exemplo, bater uma
cadeira no chão ou rasgar uma folha de jornal de maneira a fazer o maior barulho
possível. E quanto mais inadequado esse equipamento seja para traduzir a
rejeição do hospital, mais o ato parece um sintoma psicótico, e maior a
possibilidade de que a administração se considere justificada ao colocar o paciente
numa enfermaria ruim.
Quando um paciente se vê fechado,
despido e sem meios visíveis de expressão, pode precisar rasgar seu colchão, se
conseguir fazê-lo, ou escrever com fezes na parede - ações que a administração
considera como de acordo com o tipo de pessoa que precisa ser fechada.
A doutrina psiquiátrica oficial tende a
definir os atos de alienação como psicóticos - e essa interpretação é reforçada
pelos processos circulares que levam o paciente a apresentar alienação sob
forma cada vez mais bizarra, mas o hospital não pode ser dirigido de acordo com
essa doutrina.
O hospital não pode deixar de exigir de
seus participantes exatamente aquilo que é exigido por outras organizações; a
doutrina psiquiátrica é suficientemente flexível para evitá-lo, mas isso não
ocorre com os hospitais.
Considerados os padrões da sociedade mais
ampla, é preciso que haja pelo menos as rotinas ligadas à alimentação, limpeza,
roupas, acomodações para dormir e proteção de ferimentos físicos. Consideradas
essas rotinas, e preciso pedir aos pacientes que obedeçam a elas, ou levá-Ios a
isso. É preciso fazer exigências, e há demonstrações de decepção quando um
paciente não faz aquilo que se espera dele. O interesse em ver
"movimento" ou "melhora psiquiátrica” depois de uma estada
inicial nas enfermarias leva a equipe dirigente a estimular a conduta
"adequada" e a exprimir decepção quando um paciente volta à
"psicose".
O paciente, quando exprime esse
comportamento esperado dele, volta à posição de alguém em quem os outros podem “confiar"
alguém que deve saber co mo agir corretamente. Algumas inadequações, sobretudo
o mutismo e a apatia, que não perturbam e ate facilitam as rondas das enfermeiras
podem continuar a ser percebidas naturalmente como sintomas, mas, de modo
geral, o hospital atua, semi-oficialmente, com a suposição de que o paciente
deve agir de maneira controlável e respeitar a psiquiatria, e que aquele que faz
isso será recompensado por melhoria nas condições de vida; quem não o faz será
castigado como uma redução das coisas agradáveis.
Com esse restabelecimento semi-oficial das
práticas comuns de organização, o paciente descobre que muitas das maneiras
tradicionais de fugir de um local, embora sem sair dele, continuam válidas;
portanto, os ajustamentos secundários são possíveis. Um dos tipos especiais de
ajustamento secundário é formado pelas "atividades de evasão (ou “viagens”),
isto é, atividades que dão algo que permite ao indivíduo esquecer-se de si
mesmo, que temporariamente apagam todo sentido que tenha do ambiente no quaI e
para o qual devem viver.
A história ocidental de interpretação de
pessoas que parecem agir de maneira estranha é dramática: pactos voIuntários ou
involuntários com o demônio, domínio por tendências de animais selvagens etc.
Na Grã-Bretanha, na última parte do século XVIII, o mandato médico sobre esses
"transgressores" se iniciou de maneira séria. Os internados começaram
a ser denominados pacientes, as enfermeiras eram instruídas, e havia registros
de caso. As instituições, que passaram a chamar-se hospitais para insanos, receberam
um nome ainda diferente: hospitais psiquiátricos.
A partir de 1756, um movimento
semelhante foi dirigido nos Estados Unidos pelo Pennsylvania Hospital. Hoje, no Ocidente, há diferenças de
acentuação entre clínicos que aceitam um método "orgânico" e os que
aceitam um método "funcional", mas as suposições subjacentes aos tais
métodos confirmam, igualmente, a legitimidade da aplicação da versão médica de
modelo de serviço aos internados de hospitais psiquiátricos. Por exemplo, em
muitas comunidades, o certificado de um médico é uma exigência legal para hospitalização
psiquiátrica involuntária.
Quando um futuro paciente chega para sua
primeira entrevista de admissão, os médicos aplicam imediatamente o modelo de
serviço médico. Quaisquer que sejam as condições sociais do paciente, e
qualquer que seja o caráter específico de sua "perturbação'', ele pode ser
tratado nesse ambiente como alguém cujo problema pode ser enfrentado, ainda que
não tratado, pela aplicação de uma única interpretação psiquiátrica técnica. O
fato de um paciente diferir de outro quanto a sexo, idade, grupo racial, estado
conjugal, religião ou classe social é apenas um item a ser levado em
consideração, a ser, por assim dizer, "neutralizado", de forma que a
teoria psiquiátrica geral possa ser aplicada e a fim de que os temas universais
possam ser identificados sob as superficialidades das diferenças externas na
vida social.
Assim como qualquer pessoa no sistema
social pode ter um apêndice inflamado, também qualquer pessoa pode manifestar
um dos sintomas psiquiátricos básicos. Uma cortesia profissional uniforme
apresentada aos pacientes corresponde a uma aplicabilidade uniforme de doutrina
psiquiátrica. Durante a hospitalização,
é muito provável que o paciente passe da jurisdição de um médico para outro, e
essa mudança não resulta do sistema de indicação em que o clínico sugere outro
servidor e o paciente voluntariamente segue a sugestão; o paciente passa da
jurisdição de um médico para outro por causa de mudanças diárias e semanais entre
os médicos, e por causa da frequência com que os pacientes são transferidos de
uma enfermaria para outra, e os médicos são transferidos de um serviço para
outro. Como participam da mesma organização, o paciente e o médico estão
sujeitos a decisões alheias, isto é, não escolhem as pessoas que verão.
A presença do paciente no hospital é
considerada. Como prova prima de que está mentalmente doente, pois a instituição
existe para a hospitalização dessas pessoas, uma resposta muito comum às
afirmações do paciente de que está sadio é: "Se você não estivesse doente,
você não estaria no hospital".
Diz-se que o hospital, independentemente
dos serviços terapêuticos dados, por sua equipe especializada, dá um sentido de
segurança para o paciente (às vezes obtido apenas quando se sabe que a porta
está trancada) e um alivio de responsabilidades. A verdade é que é difícil
encontrar ambientes que introduzem maiores inseguranças e as responsabilidades
que surgem são afastadas a um preço muito grande e muito permanente.
A equipe psiquiátrica especializada não
tem um papel fácil. A licença médica de seus membros lhes dá um dos títulos
mais seguros de deferência e consideração existentes em nossa sociedade, e uma
das profissões mais sólidas de serviço especializado; apesar disso, no hospital
psiquiátrico, seu papel é constantemente discutível. Tudao que ocorre no hospital
precisa ser legitimado por sua assimilação a um esquema de serviço médico, ou
traduzido para este último. As ações diárias da equipe dirigente precisam ser
definidas e apresentadas como expressões de observação, diagnóstico e
tratamento. Os doentes mentais podem descobrir-se numa "atadura" muito
especial. Para sair do hospital, ou melhorar sua vida dentro dele, precisam
demonstrar que aceitam o lugar que lhes foi atribuído, e o lugar que lhes foi
atribuído consiste em apoiar o papel profissional dos que parecem impor essa
condição. Essa servidão moral auto-alienadora, que talvez ajude a explicar por
que alguns internados se tornam mentalmente confusos, é obtida em nome da
grande tradição da relação de serviço especializado, principalmente em sua
versão médica. Os doentes mentais podem ser esmagados pelo peso de um ideal de
serviço que torna a vida mais fácil para todos.
Tendo em vista que Erving Goffman
escreveu a obra Manicômicos, prisões e
conventos, entre as décadas de 50/60, período em que a psiquiatria e as
políticas públicas em saúde mental estavam sofrendo profundas transformações, é
necessário “filtrar” as informações e considerações tecidas por ele e
transpô-las aos dias atuais.
Claro que as instituições que tratam de
doentes mentais mudaram e melhoraram seus aspectos internos físicos e de
funcionamento. No entanto, em âmbito nacional, considerando apenas o Brasil,
não podemos dizer que nos encontramos próximos ao ideal.
Muito pelo contrário; ainda estamos
longe do ideal, visto que os investimentos em saúde pública no nosso país ainda
são baixos e mal administrados. Basta visitar o Hospital Adauto Botelho, em Cuiabá-MT, para verificar o descaso do governo e a péssima gestão, que acarretam falta de intraestrutura e de atendimento adequado ao internados.
A psiquiatria mudou, a medicina mudou,
até as doenças do mundo moderno mudaram. Resta agora aplicar e trabalhar
efetivamente com essas mudanças, em benefício da sociedade, deixando no século
passado as formas arcaicas e ineficientes de se tratar os doentes mentais e
inseri-los na sociedade como pessoas funcionais, dando-lhes voz, atenção, suporte
e orientação. Além do tratamento médico,
é importante promover a ideia de que a convivência familiar e social é possível
e desejável.
Referências:
BERNARD,
Claude. Introdução à Medicina
Experimental. Lisboa: Guimarães e C.ª, 1978.
GOFFMAN,
Erving. Manicômios, prisões e conventos.
São Paulo: Perspectiva, 1961.
LOPES, Antônio
Carlos (editor). Tratado de Clínica
Médica. V.2. São Paulo: Roca, 2006. p. 2470-1.
Observatório de
Segurança Pública: boas práticas no Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.observatoriodeseguranca.org/polemica>. Acesso em: 14 abr. 2012.
Tempo Freudiano:
associação psicanalítica. Disponível em: <http://www.tempofreudiano.com.br/artigos/detalhe.asp?cod=21>. Acesso em: 27 abr. 2012.
VIDAL, Carlos
Eduardo Leal; BANDEIRA, Marina; GONTIJO, Eliane Dias. Reforma psiquiátrica e serviços residenciais terapêuticos. Disponível
em: <http://www.scielo.br/pdf/jbpsiq/v57n1/v57n1a13.pdf>. Acessso em: 24 abr. 2012.
11 comentários:
Quem precisa urgentemente de uma manicômio são os donos do poder!!! Uns insanos e paranoicos que precisam de camisa de força!!!
Bjussssss
Bem falado, mamis..
Na verdade, o que eles precisam mesmo é de vergonha na cara e um negócio chamado "caráter"....
Bando de safado..
Milena,parabéns pelo seu blog e por sua pesquisa tão completa e profunda!Muito interessante sua abordagem,parabéns!bjs,
Parabéns pelo tema abordado no seu blog, assuntos inerentes a doenças mentais ainda são tratadas como tabu. Eu li a pouco tempo Mentes Perigosas e fiquei chocada com a quantidade de psicopatas que convivem tão perto de nós. Sucesso e virei sempre te ler. Abraços!!!!
Boa tarde Anne Lieri,
fico feliz que tenha gostado..
Obrigada pelo carinho.
Abs,
Milena
Olá Elsy,
você tem razão. Esse assunto ainda é um tabu e é tratado de maneira muito periférica ainda...
Mentes perigosas é interessantíssimo e é bom que você o tenha citado, pois vou indicá-los, nos "Links interessantes", para leitura. Eu o tenho em pdf...
Chocante, não? Psicopatas, sociopatas, amorais, maníacos depressivos, podem estar presentes na nossa vida, sem ao menos percebermos. Quando esses distúrbios da personalidade se agregam a um "eu" distorcido, mal e egoísta, aí se tornam perigosos.
Por isso é importante conhecermos um pouco sobre psicopatologias e neuropatologias, para que possamos reconhecer essas características, quando nos depararmos com elas. Claro que nem sempre será possível, mas ter algum conhecimento é melhor do ter conhecimento algum.
E devemos nos proteger sempre orando e fazendo o bem. Energias boas atraem coisas boas e pessoas boas....
Voltei sempre para me visitar.
Abraços,
Milena
Olá Milena. A convite de sua mãe, estive aqui e voltarei. Excelente trabalho. Parabéns e vá em frente. Meu carinho.
Mais um "parabéns".
Quanto à psicopatologia é minha ou do blog, porque, ontem, a página estava completamente diferente!
Mas o texto continuava "com a sua cara". Um abração, Ju
Milena, coloquei algumas palavras suas e voltei aqui para tirar algumas dúvidas. Por exemplo, até que ponto podemos ver como problemas mentais (que, como leiga, chamaria de loucura) essa maneira imoral de se aproveitarem de pessoas mais necessitadas financeiramente para, mesmo assim, se aproveitarem do pouco que elas têm?
A Casa da Mãe Joana - http://puteiro-nacional.blogspot.com.br/
Oi Jurema! bom te ver por aqui de novo!
Como vai? Fico feliz pelas suas colocações e vou tentar responder à sua pergunta, tendo em vista teorias filosóficas e pontos de vista da psiquiatria:
Veja bem. O século XIX e o início do século passado (XX) foi a era de Pinel, um médico francês, considerado por muitos o pai da psiquiatria. Notabilizou-se por ter considerado que os seres humanos que sofriam de perturbações mentais eram doentes e que ao contrário do que acontecia na época, deviam ser tratados como doentes e não de forma violenta. Foi o primeiro médico a tentar descrever e classificar algumas perturbações mentais. Ele elevou a categoria dos doentes, antes tratados como criminosos ou endemoniados, à condição de "homo paciens" e a doença mental, como o resultado de uma exposição excessiva a estresses sociais e psicológicos, e, em certa medida, a danos hereditários, sendo que tais enfermidades decorreriam de alterações patológicas no cérebro. Assim, baniu tratamentos antigos tais como sangrias, vômitos, purgações e ventosas, preferindo terapias que incluíssem a aproximação e o contato amigável com o paciente, proporcionando-lhes, ainda, um programa de atividades ocupacionais, onde o tratamento digno e respeitoso foi a tônica.
No entanto, apesar suas teorias progressistas, Pinel admite a loucura como lesão das faculdades mentais, de ordem orgânica ou moral e propõe um tratamento moral da loucura, indicando a função de um diretor espiritual e ação notadamente repressora sobre os pacientes, que chamaria de reeducação moral.
Essa idéia de moral, aliada à sanidade mental, vem do advento do cristianismo. Com a institucionalização do cristianismo no século IV d.C. e com a queda o Império Romano do Ocidente no ano de 476 d.C. a doença mental é associada à possessão por espíritos malignos. Durante toda a Idade Média a religião cristã tornou-se a força dominante em virtualmente todos os aspectos da vida européia. A vida era percebida como uma luta entre as forças do bem e as forças do mal, sendo estas dirigidas pelo Diabo. Consequentemente, a perturbação mental foi considerada como um pecado ou possessão pelo Diabo, portanto, algo amoral.
Atualmente a ética é focada na pessoa humana. Isto é os valores são centrados no homem e não dedutíveis – de acordo com uma interpretação mais ou menos ao gosto pessoal – do Alcorão, dos livros sagrados dos Vedas ou da Bíblia(nas suas diversas traduções e interpretações).
Claro que ética e moral não são assuntos simples. Tem de ser sempre contextualizados e ter em consideração a época e a sociedade a que nos referimos.
Dizer que a pessoa x é boa ou má, que tem comportamentos imorais ou não ou mesmo que é louco depende da época.
Nas palavras de Nietzsche, em “Além do bem e do Mal”:
Por mais estranho que possa soar, em toda “ciência da moral” sempre faltou o problema da própria moral: faltou a suspeita de que ali havia algo problemático. O que os filósofos denominavam “fundamentação da moral”, exigindo-a de si, era apenas, vista à luz adequada, uma forma erudita da ingênua fé na moral dominante, um novo modo de expressá-la, e portanto um fato no interior de uma determinada moralidade, e até mesmo, em última instância, uma espécie de negação de que fosse lícito ver essa moral como um problema
A psiquiatria tradicional, do mundo moderno, considera a imoralidade como um distúrbio de personalidade, mas não, necessariamente, como uma doença mental.
Em minha opinião, a imoralidade é apenas um ponto de vista, pois o que pode ser imoral para mim não é para você e vice-versa.
No entanto, essa imoralidade a que você se refere, de se aproveitar dos mais fracos e necessitados, em benefício próprio, acredito que seja simplesmente falta de caráter e de espiritualidade e não uma doença mental.
Dê uma olhada no texto abaixo, pois fala desse assunto e achei interessante:
http://profcastroudia.vilabol.uol.com.br/paginas/sindrome.htm
Bom, espero ter respondido a tua pergunta. Se não fui clara, pode me procurar novamente, que tentaremos debater...
Grande abraço,
Milena
Olá Ajuricaba,
como vai? Obrigada pelo comentário carinhoso e espero que volte sempre..
Abs,
Milena
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