Ao
estudarmos as linguagens, as manifestações individuais e de grupo, tanto orais
quanto escritas, têm-se a necessidade de análises mais profundas, levando-se em
consideração os vários tipos de discursos, as suas condições de produção etc.,
originando assim a Análise do Discurso (AD).
As
duas linhas de AD mais famosas são a francesa e a anglo-saxã. O que diferencia
a AD de Origem francesa da anglo-saxã, ou comumente chamada de americana, é que
esta última considera a intenção dos sujeitos numa interação verbal como um dos
pilares que a sustenta, enquanto a AD francesa não considera como determinante
essa intenção do sujeito; considera que esses sujeitos são condicionados por
uma determinada ideologia que predetermina o que poderão ou não dizer em
determinadas conjunturas histórico-sociais.
Michel Pêcheux |
Não se sabe quem foi o fundador da disciplina
da AD. Muitos atribuem sua origem a Jean
Dubois e Michel Pêcheux, sendo
que ambos partilhavam do Marxismo e da Política, das convicções sobre a luta de
classes, a história e o movimento social. É sob o horizonte do Marxismo e da
Linguística que nasce a AD.
Temos também o trabalho de Harris, cujos
estudos vão além das análises confinadas meramente à frase e os trabalhos de R.
Jakobson e E. Benveniste sobre a enunciação.
A AD inicialmente era definida como “o estudo
linguístico das condições de produção de um enunciado”, apoiando-se sobre
conceitos e métodos da linguística. Mas só a linguística não é suficiente para
marcar a especificidade da AD no interior dos estudos da linguagem e para isso
será necessário considerar outras dimensões como a ideologia e o discurso.
Discursos são como um conjunto de enunciados
que se remetem a uma mesma formação discursiva (“um discurso é um conjunto de
enunciados que tem seus princípios de regularidade em uma mesma formação
discursiva”). Para Foucault, a análise de uma formação discursiva consistirá na
descrição dos enunciados que a compõem. E a noção de enunciado em Foucault é
contraposta à noção de proposição e de frase, concebendo-o como a unidade
elementar, básica que forma o discurso. O discurso seria concebido, dessa
forma, como uma família de enunciados pertencentes a uma mesma formação
discursiva.
A necessidade de comunicação acompanha os passos humanos na história. Está associada à sobrevivência desde os traços alegóricos das cavernas até a onipresença dos satélites, do telefone celular, do fax e dos computadores. É um pré-requisito da dominação humana sobre os pressupostos da natureza. À medida que as configurações sociais se tornam mais complexas, aumenta a necessidade de discursividade. Os textos, das falas e as imagens transitam constantemente pela multiplicidade dos espaços sociais e nos cercam no dia a dia.
Na
caminhada humana, inúmeros passos, dados em diversificadas circunstâncias históricas,
mobilizaram a essencialidade do discurso. É possível sublinhar, entre outros, os
impulsos da descoberta de Gutenberg, da Revolução Francesa e da Segunda
Revolução Industrial.
A
partir da segunda metade do século XIX, a Segunda Revolução Industrial começou a
redefinir o meio econômico e o político. A partir dela, tudo o que o homem consome
passa a ser fabricado pela máquina. A maior velocidade de produção exige um maior
número de mercados.
A informação se converte em mais uma mercadoria, com um duplo valor de troca. É ideológica e, ao mesmo tempo, dá lucro. Significa uma das mais perfeitas sínteses dos níveis infra-estrutural e superestrutural. Representa a própria redefinição sublimada do conceito de capital.
No
século XX, a internacionalização da informação se torna uma realidade, materializada,
também, pela mídia eletrônica. O seu fluxo abreviou as distâncias e redesenhou
os mapas. É um espelho da onisciência do homem em todos os cantos do mundo.
Os
meios massivos de comunicação foram uma das mais consequentes instâncias de
poder nesse fim de século. Configuram uma personalidade, particularizada, de
instituição pós-moderna. São empresas que produzem e reproduzem o econômico e o
ideológico, como uma única e indissociável mercadoria. Em nenhum outro momento
histórico, como agora, se produziu tanto discurso.
De
acordo com a etimologia do termo discurso, “Dis-cur-sus é, originalmente, a ação
de correr para todo lado, são idas e vindas ‘démarches’, ‘intrigas’”. Tal
perspectiva etimológica consegue indicar, em sua significação estática, o sentido
de movimento e de relatividade. Insinua a prática que envolve a lida com os
signos, permeada pela tecitura e contextura, marcas digitais da historicidade.
A
maior parte dos procedimentos para elaborar uma teoria que superasse o impasse
em torno de uma teoria do discurso permanecia presa a uma referência à
dicotomia língua/fala, acreditando que a problemática pudesse ser resolvida
deslocando a questão para o pólo da fala. As várias tentativas iniciais de
elaboração de uma teoria do discurso sofriam da ausência de definição de seu
objeto, resultante de uma referência implícita ou explícita aos termos fala e
diacronia.
1.
O modelo harrisiano
O
ano de 1952 é considerado importante para a história da AD, pois é publicada a
obra de Harris sob o título Análise do Discurso. A análise dos
enunciados, sob a forma harrisiana, se apresenta como uma tentativa para
elaborar um procedimento formal de análise dos segmentos superiores à frase,
permitindo levar em conta relações transfrásticas que podem ser observadas nos
“textos”. Propõe-se aplicar o método da análise distribucional praticado pela
linguística descritiva ao nível da frase. Embora a obra de Harris possa ser
considerada o marco inicial da análise do discurso, ela se coloca ainda como
simples extensão da linguística. O procedimento analítico não visava a buscar o
sentido do texto, excluindo qualquer reflexão sobre a significação e as considerações
sócio-históricas de produção, que vão distinguir e marcar posteriormente a
Análise do Discurso de orientação francesa.
2.
O modelo da teoria da enunciação
A
noção de enunciação constitui a tentativa mais importante para ultrapassar os
limites da linguística da língua, permitindo elaborar um conceito que
possibilitasse colocar em relação língua e fala. O domínio dos “dêiticos” parecia,
com efeito, situar-se na intersecção do “código” e do “ato” de fala. Bally
(1951) faz uma primeira formulação do problema da enunciação, tendo sido
Jakobson (1963) e Benveniste (1966,1974) os pioneiros das pesquisas nesse
domínio. Apesar das diferenças de abordagem, seus trabalhos convergem ao
colocarem em evidência uma classe de unidades da língua que se definem por suas
propriedades funcionais no discurso: os embreantes (shifters) para Jakobson ou
elementos indiciais ou dêiticos para Benveniste. Mostram “a particularidade
desses elementos que é o de remeter à “instância do discurso” em que são
produzidos, constituindo no enunciado pontos de emergência do sujeito da
enunciação. Esta descoberta funda a oposição enunciado/enunciação e abre uma
perspectiva nova à análise do texto: este não manifesta apenas o funcionamento
da língua como repertório de signos e sistema de suas combinações, mas remete
para a linguagem assumida como exercício pelo indivíduo. Para Benveniste
(1966,1974), o que transforma a língua em discurso é o ato de enunciação – ato
pelo qual o sujeito falante se apropria do aparelho formal da língua. Todo ato
de enunciação supõe, portanto, um trabalho individual de conversão da língua em
discurso por um processo de apropriação. Nesse processo de apropriação, a
categoria dos dêiticos, os pronomes pessoais ocupam um lugar privilegiado, pois
será por meio deles que se dará conta da presença do sujeito na linguagem e no
mundo. Para Benveniste (1966), “a linguagem só é possível porque cada locutor
se apresenta como sujeito, remetendo a ele mesmo como eu no seu
discurso”. Portanto, o eu do código está disponível a todos e falar é
apropriar-se dele, é organizar o discurso em torno do eu/aqui/agora, e o
mundo ao redor dessas coordenadas. O tu, embora figura necessária e
complementar, não é igual nem simétrico ao eu,
que lhe é transcendente e do qual é apenas eco. A designação dêitica
torna-se, assim, o primeiro ponto de ancoragem do sujeito e permite dar um
primeiro sentido à noção de subjetividade. Em Benveniste, no entanto, o sistema
dos pronomes pessoais, central para ele, se constitui pela exclusão da terceira
pessoa colocada como não pessoa.
Pode-se
dizer que todas essas tentativas de superação de uma linguística restrita à língua
não atingiram seu objetivo, que seria a constituição de um objeto realmente
novo, o discurso, porque continuaram ainda presas à dicotomia saussuriana
(Ferdinand Saussure), assimilando a questão do discursivo à fala, com exclusão
da história, concebendo o sujeito de forma idealizada, na sua unicidade e homogeneidade,
como fonte criadora, origem do sentido, sentido entendido como transparência.
A
emergência da disciplina que mais tarde passa a ser denominada AD de linha
francesa tem, supostamente, uma dupla fundação, centrada na atuação de Jean Dubois
e Michel Pêcheux.
Os
anos 60 são os anos do estruturalismo triunfante. A linguística, promovida a
ciência piloto, está no centro do dispositivo das ciências. O projeto da AD
nasce neste contexto, com uma expansão da linguística e a possibilidade de uma
disciplina (nova).
Na
conjuntura teórica da França dos anos 1968-70, em um momento em que emerge o
sentimento dos limites e do relativo esgotamento do estruturalismo, nasce a AD,
presidida pela linguística e pelo marxismo, tendo inscrito no seu projeto um
objetivo político: usar a arma científica da linguística como um novo meio para
abordar a política.
Assim,
a noção de sujeito em Pêcheux, é determinada pela posição, pelo lugar de onde
se fala. E ele fala do interior de uma formação discursiva (FD), regulada por
uma formação ideológica (FI). E isso o leva a conceber uma subjetividade
assujeitada às coerções da FD e da FI. Portanto, um sujeito marcado por uma
forte dimensão social, histórica, que na linguagem é balizada pela FD que
define o que pode e deve ser dito por um sujeito.
Nos
fins dos anos 70 esta AD da primeira fase estava de certa forma consolidada nos
trabalhos de pesquisa, em estudos concretos que lhe conferiam realidade.
Situando-se num campo polêmico pelos deslocamentos que provoca, ela foi logo
objeto de críticas tanto da parte dos próprios analistas do discurso quanto dos
linguistas e de pesquisadores estranhos ao campo da linguística.
A
AD tentou construir um objeto, buscando ao mesmo tempo instrumentos operatórios
para trabalhá-lo, mas ao fazer isso, paradoxalmente, a AD, de alguma forma,
repetiu em sua constituição as condições que presidiram a fundação saussuriana
do objeto da linguística. Isto é, da mesma forma que na linguística da língua a
homogeneidade da língua assegurava a regulação das exclusões e as rejeições
para fora do objeto, o conceito de FD , tal como foi concebido nessa fase, como
espaço estrutural fechado, reproduziu o fechamento do corpo discursivo com a
homogeneização do corpus.
Assim,
depois de 1975, AD passa a uma segunda fase em que, a partir dessas construções
do momento inicial, objetos de críticas pertinentes, se dão desconstruções e
reconfigurações provocadas pelas transformações da conjuntura teórica e
política que acontecem na França.
Pêcheux
não fica imune a esse processo de reconfiguração. Reformula sua noção de FD ao
reconhecer que uma FD não é um espaço estrutural fechado, pois está em relação
paradoxal com seu “exterior” ao ser constitutivamente “invadida por elementos
que vêm de outro lugar que se repetem nela, sob a forma de pré-construído e de
discursos transversos”. Surge então a
noção de interdiscursividade para designar o “exterior específico” que irrompe
no interior de uma FD. Ao se colocar a relação da FD com um além exterior e
anterior, vê-se obrigado a reconhecer como elementos importantes a serem
considerados na análise de uma FD.
O
sujeito do discurso concebido, de início, como puro efeito de assujeitamento ao
dispositivo da FD com o qual se identifica, vai sendo também contaminado por
essa preocupação nova (o exterior como constitutivo do interior discursivo) que
leva ao questionamento da própria concepção original da FD e ao reconhecimento
do discurso como um objeto heterogêneo. Sob o primado teórico do outro sobre o
mesmo, procura-se tematizar as formas linguístico-discursivas do discurso outro
e da identidade discursiva.
Posteriormente,
a recepção das idéias de Bakhtin (1979) no Ocidente, primeiro pela via da
literatura, se faz sentir também na AD pela dimensão sócio-interacionista da
sua concepção de linguagem. Concepção que está assentada no princípio de que
toda palavra é dialógica por natureza, porque pressupõe sempre o outro;
o outro sob a figura do destinatário a quem está voltada toda alocução, a quem
se ajusta a fala, de quem se antecipam reações e se mobilizam estratégias. Mas,
na concepção bakhtiniana, o outro é ainda o outro discurso ou os outros
discursos que atravessam toda fala numa relação interdiscursiva.
Concebe-se
a linguagem como forma de interação social em que o outro vai desempenhar um
papel fundamental na constituição do significado e insere todo ato de
enunciação individual num contexto mais amplo, revelando as relações
intrínsecas entre o linguístico e o social.
Nesse
quadro teórico discursivo, em que o ato de enunciação é uma forma de interação
social, como fica a questão do sujeito? Nesse quadro só se pode conceber um
sujeito social, histórica e ideologicamente situado, que se constitui na
interação com o outro. Eu sou eu na
medida em que interajo com o outro. É o outro que dá a medida do que eu
sou. A identidade se constrói nessa relação dinâmica com a alteridade.
O
texto encena, dramatiza essa relação. Nele, o sujeito divide seu espaço com o
outro porque nenhum discurso provém de um sujeito adâmico que, num gesto
inaugural, emerge a cada vez que fala/escreve como fonte única do seu dizer.
Segundo essa perspectiva, o conceito de subjetividade se desloca para um sujeito
que se funde como partícula de um corpo histórico-social no qual interage com
outros discursos de que se apossa ou diante dos quais se posiciona (ou é
posicionado) para construir sua fala.
Articulada
ao princípio dialógico e a essa noção de sujeito, temos uma outra noção
fundamental na teoria bakhtiniana de linguagem: a noção de polifonia. Determinado
social e historicamente, todo texto trabalha a linguagem de forma a criar maior
ou menor efeito polifônico. É nesse sentido que se tem disseminada a metáfora
de que o texto se transforma em uma arena de lutas em que vozes, situadas em
diferentes posições, emergem, polifonicamente, numa relação de aliança, de
oposição ou de polêmica.
Mikhail Bakhtin |
Podemos
ver a manifestação dessa heterogeneidade na própria superfície discursiva
através da materialidade linguística do texto em que formas marcadas acusam a
presença do outro, tais como: as formas do discurso relatado (discurso direto,
indireto); as formas pelas quais o locutor inscreve no seu discurso, sem que
haja interrupção do fio discursivo, as palavras do outro, indicando-as quer através
das aspas, do itálico, de uma entonação específica, quer através de um comentário,
de um ajustamento ou de uma remissão a um outro discurso; ao lado dessas formas
marcadas, encontram-se formas mais complexas em que a presença do outro não é
explicitada por marcas unívocas na frase. É o caso do discurso indireto livre,
da ironia, da alusão, da pressuposição, da imitação, da reminiscência em que se
joga com o outro discurso não mais no nível da transparência, do explicitamente
mostrado ou dito, mas no espaço do implícito, do semidesvelado, do sugerido.
Aqui não há uma fronteira linguística nítida entre a fala do locutor e a do
outro, as vozes se misturam nos limites de uma única construção linguística.
Tendo em vista a evolução e mudanças ocorridas, então, dentro da
AD, temos algumas novas subáreas surgindo e se desenvolvendo, como a Análise de
Discurso Crítica, que é uma abordagem transdisciplinar da linguagem na vida
social que se situa na interface entre a Ciência Social Crítica (CSC) e a Linguística
Sistêmica Funcional (LSF).
A transdisciplinaridade é necessária a abordagens que investiguem
o uso da linguagem em sociedade, pois não há uma relação externa entre
linguagem e sociedade, mas uma relação interna e dialética. O rompimento das
fronteiras disciplinares traz à Lingüística a ancoragem em perspectivas
teóricas acerca da estrutura e da ação sociais, e propicia para as Ciências
Sociais um arcabouço para análise textual.
Os estudos funcionalistas têm por objetivo, além de estabelecer
princípios gerais relacionados ao uso da linguagem, investigar a interface
entre as funções sociais e o sistema interno das línguas. A compreensão das
implicações de funções sociais na gramática é central à discussão que relaciona
linguagem e sociedade. A relação entre as funções da linguagem e a organização
dos sistemas lingüísticos é, para Halliday (1973), um traço geral da linguagem
humana, pois tais sistemas são abertos à vida social. Daí a necessidade de se
estudarem os sistemas internos das línguas naturais sob o foco das funções
sociais.
A variação funcional não é
apenas uma distinção de usos da linguagem, é algo fundamental para sua
organização, uma propriedade fundamental da linguagem. Em outras palavras, de
acordo com os pressupostos da LSF, as funções da linguagem não são apenas
extrínsecas, mas integradas à organização básica da linguagem. As abordagens
funcionais da linguagem têm enfatizado seu caráter multifuncional e, nesse
sentido, Halliday (1991) registra três macrofunções que atuam simultaneamente
em textos: ideacional, interpessoal e textual.
A função ideacional
da linguagem é sua função de representação da experiência, um modo de
modelar a ‘realidade’ na língua: os enunciados remetem a eventos, ações,
estados e outros processos da atividade humana por meio de relação simbólica.
Essa função trata da expressão lingüística do conteúdo ideacional, presente em
todos os usos da linguagem – independente do uso que se faz da linguagem, os
recursos ideacionais são explorados em seu potencial para expressar um
conteúdo.
A função interpessoal refere-se ao significado da perspectiva
de sua função no processo de interação social, da língua como ação. Essa
função, que trata dos usos da língua para expressar relações sociais e pessoais
está presente em todos os usos da linguagem, assim como a função ideacional.
A terceira função proposta
por Halliday é a textual:
aspectos semânticos, gramaticais, estruturais, que devem ser analisados no
texto com vistas ao fator funcional, uma vez que a seleção de estruturas
textuais relaciona-se a contextos sociais de interação. A gramática é o
mecanismo linguístico que opera ligações entre as seleções significativas
derivadas das funções linguísticas, realizando-as em estrutura unificada.
As três macrofunções são inter-relacionadas, e quaisquer textos
podem ser analisados sob cada um desses aspectos. Isso significa que todo
enunciado é multifuncional em sua totalidade, serve simultaneamente a diversas
funções. Nesse sentido, a linguagem é funcionalmente complexa. As estruturas
linguísticas não ‘selecionam’ funções específicas isoladas para desempenhar; ao
contrário, expressam de forma integrada todos os componentes funcionais do
significado.
Os estudos discursivos têm atraído atenção de pesquisadores/as de
diversas áreas da ciência social contemporânea. Segundo Fairclough (2000), esse
interesse deve-se, por um lado, a teorizações recentes da modernidade,
amplamente centradas no papel da linguagem na vida social moderna, e, por outro
lado, à “virada linguística na vida social recente” propriamente dita.
Embora essas abordagens teóricas da ciência social baseadas na
linguagem e no discurso ajudem a iluminar a questão de como a linguagem adquire
maior visibilidade nas práticas sociais – sendo portanto muito enriquecedoras
para a discussão do discurso na sociedade –, não elaboram investigações
empíricas dos modos como essa relação discurso/ sociedade se concretiza na prática
social. Essa lacuna é preenchida pela Análise de Discurso Crítica (ADC).
A ADC propõe-se um corpo teórico da linguagem na modernidade que,
alimentada na ciência social crítica, apresenta um foco mais específico nos
modos como a linguagem figura na vida social, e um conjunto de métodos para a
análise linguística de dados empíricos, entendendo o texto – em sentido amplo:
escrito, oral, visual – como unidade mínima de análise. Isso ilustra em que
medida a ADC constitui-se uma ponte entre a CSC e a LSF, de cada qual tomando o
necessário para o debate focalizado no papel da linguagem nas sociedades
hodiernas, explicitamente no que tange a problemas sociais parcialmente discursivos.
Em ADC, a linguagem é
percebida como parte irredutível da vida social, dialeticamente interconectada
a outros elementos sociais. Trata-se de uma proposta capaz de mapear relações
entre os recursos linguísticos utilizados por atores sociais e aspectos da rede
de práticas em que a interação discursiva se situa. Para atingir tal objetivo,
análises discursivas críticas não consideram textos como objetos de
investigação isolados.
Para dar conta dessa relação com a CSC em termos teóricos e dessa
dimensão crítica assumida em termos práticos a ADC busca o conceito de práticas
sociais, um dos conceitos basilares da ADC, ao lado do de discurso. Para alguns
teóricos, a análise das práticas sociais constitui um foco teoricamente coerente
e metodologicamente efetivo porque permite conectar a análise das estruturas
sociais à análise da (inter)ação, o que busca superar a improdutiva divisão
entre teorias da estrutura e teorias da ação.
É a CSC que provê à ADC um arcabouço para a compreensão da vida
social como constituída de práticas e redes de práticas. Toda prática social é
composta de elementos que se articulam e não podem ser reduzidos um ao outro.
Na produção da vida, social ou natural, a operação de qualquer mecanismo é
mediada por outros, de tal forma que nunca se excluem ou se reduzem um ao
outro. O discurso é visto como um momento da prática social ao lado de outros
momentos que também devem ser privilegiados na análise.
Portanto, tendo todos esses fatores em mente, percebemos que a
linguagem é um construto muito mais complexo e inter-relacionado com outros
fatores extralinguísticos, do que supomos à primeira vista. Se a linguagem de
um sujeito considerado “normal” e “funcional” já é algo complexo de ser
analisar e compreender, imaginem então a linguagem de um indivíduo
esquizofrênico! É exatamente nesse campo que estou trabalhando em minha
pesquisa e expondo nesse blog.
Dentre a variedade de
topografias e funções do comportamento humano, o comportamento verbal é mais
uma categoria comportamental. Na visão skinneriana (Burrhus Frederic Skinner) é adotada uma
abordagem funcional para o entendimento das condições sob as quais os
comportamentos verbais ocorrem.
B.F. Skinner |
Apesar da distinção do
comportamento verbal dos demais operantes devido a questão mediacional, o
episódio verbal total é uma questão relativa ao comportamento humano e,
portanto, é uma questão que pode ser respondida com os conceitos e técnicas da
psicologia enquanto ciência experimental do comportamento. Isto implica em
considerar que o comportamento verbal pode ser modificado, inclusive, por meio
de reforçamento e extinção.
O desenvolvimento
do comportamento verbal característico de pessoas que receberam o diagnóstico
de esquizofrenia possui um curso comum como de qualquer outro comportamento,
isto é, se estabelece das relações com o ambiente. Alguns trabalhos de enfoque
comportamentalista defendem o estudo de delírios e alucinações como comportamento
verbal.
A
fala psicótica, neste caso, trata-se de uma resposta verbal que é controlada
por estímulos específicos, tanto discriminativos como reforçadores, não
decorrendo simplesmente de funções neurais. Como comportamento verbal, a fala
psicótica funciona como um operante: uma classe de respostas suscetíveis à
modificação pelas consequências por elas produzidas. Logo, um operante
especifica pelo menos uma relação com uma variável. A concepção de operante é
extremamente significativa no estudo do comportamento por especificá-lo numa
relação funcional, evidenciado na contingência tríplice: evento
antecedente-comportamento-resultado.
Vale
destacar que a análise do comportamento verbal é de extrema relevância e fornece
informações sobre um tipo de comportamento essencial ao convívio do indivíduo
em sociedade, permitindo uma ampliação do estudo envolvendo o comportamento
humano.
Skinner
(1957/1978) define o comportamento verbal como um operante em que o reforço é
mediado socialmente, é um comportamento que tem sua origem nas contingências
sociais. Aquele que se comporta verbalmente tem a consequenciação de sua ação
disponibilizada por outros com quem interage no momento.
Aquele
que inicialmente emite o comportamento verbal é denominado como falante, o que
fornece o reforço a esta ação como ouvinte e esta interação como episódio
verbal. A interação falante-ouvinte dependerá da história de condicionamento
estabelecida pela comunidade, com a qual o ouvinte aprende a consequenciar o
falante por meio das práticas de reforçamento. Desta forma, o ouvinte é capaz
de interagir com o falante, compreender o falante e pode ou não reforçá-lo. A
presença de um ou mais ouvintes (a audiência) funciona como estímulo
discriminativo para a emissão do comportamento verbal, aumentando a probabilidade
de sua ocorrência já que sinaliza a possibilidade de reforçamento.
Assim,
a resposta verbal pode ser influenciada por estímulos discriminativos,
consequências reforçadoras, consequências aversivas ou operações
estabelecedoras.
Alguns
estudos têm demonstrado sucesso na alteração das falas psicóticas em pessoas
com o diagnóstico de esquizofrenia via procedimentos de reforçamento diferencial.
Nas
interações do tipo pessoa a pessoa, a manutenção do comportamento verbal do
falante requer constantes respostas do ouvinte direcionadas a ele. O ouvinte
pode fornecer um fluxo constante de reforçadores verbais, como palavras do tipo
“Certo”, “Mmhmm”, “Sim”, “Não”, “Eu lamento!”, “Não foi desta vez!” etc.
Consequentemente, a privação social aumenta significativamente a efetividade de
cada reforçador verbal.
Os
pesquisadores Isaacs, Thomas e Goldiamond (1966), por meio de um procedimento
de modelagem do comportamento verbal, de uma pessoa diagnosticada com esquizofrenia
catatônica, demonstraram como o meio social mantém um comportamento
problemático. A pessoa submetida neste programa de intervenção se mostrava
completamente muda durante anos e após o trabalho de modelagem passou a
emitir comportamentos verbais com frequência e em diferentes situações. Durante
as sessões experimentais eram fornecidos reforçadores, como cigarro, na
tentativa de promover
a alteração do comportamento do participante, que permanecia sempre estático.
Em
uma sessão, o experimentador ao retirar os cigarros do bolso, acidentalmente,
deixou cair um pacote de goma de mascar e observou que os olhos do participante
se moveram na direção do pacote e retornaram a sua posição usual. A partir daí
a modelagem com o uso da goma de mascar como reforçador foi aplicada e chegou a
ser aplicada a movimentos cada vez mais elaborados, desde o movimento do
direcionamento do olhar à apresentação de palavras para uma solicitação.
Contudo,
com o término do trabalho estabelecido pelos pesquisadores, as pessoas que
frequentavam a instituição continuavam a reforçar os pedidos não-verbais deste
participante, fortalecendo as respostas não-verbais e enfraquecendo os comportamentos
verbais. Dessa forma, considerar o contexto se torna imprescindível para
avaliar os controles do comportamento, o qual estará favorecendo ou dificultando
determinada ação.
Patterson
e Teigen (1973) realizaram um trabalho com uma mulher diagnosticada com
esquizofrenia paranóide e continuamente internada em instituições psiquiátricas
por 26 anos. Quando questionada sobre assuntos referentes a sua identidade e história
pessoal a paciente apresentava respostas estranhas e fatos inverídicos. E
quando confrontada sobre a legitimidade dos fatos, a paciente comentava sobre
outros aspectos sem responder as perguntas. Por exemplo, em uma situação a
paciente foi colocada a se olhar em um espelho e questionada sobre a idade que
tinha, já que dizia ter 18 anos de idade enquanto na verdade tinha 60 anos. A
paciente respondia que tinha cabelos bonitos e que as partes de seu corpo que
eram jovens haviam sido roubadas e substituídas por partes do corpo de uma
outra pessoa mais velha.
Com o início do programa de intervenção, a paciente era questionada diariamente com cincos questões referentes a sua identidade, as questões permaneciam sempre as mesmas. Às respostas corretas eram fornecidas fichas para serem trocadas por objetos de uso pessoal. Gradualmente foram estabelecidos intervalos varáveis maiores ao fornecimento das fichas. Em uma fase seguinte, as fichas eram fornecidas de forma não-contingente e antes de cada sessão de entrevista. Em outra fase a participante era instruída sobre o recebimento de fichas simbólicas e com a manutenção do reforçamento não-contingente. Finalmente, uma outra fase de reforçamento contínuo foi estabelecida para as respostas corretas.
Com
a observação da participante em outros contextos fora da instituição e por entrevistas
realizadas por pessoas diferentes foi verificada que as respostas corretas foram
emitidas nessas situações. Durante o período contingente as respostas só foram apresentadas
após oito tentativas. Durante o período parcial de reforçamento das respostas
corretas, a participante respondeu corretamente em todos os momentos. Porém
quando a participante foi informada que ao final da sessão só receberia fichas simbólicas,
todas as respostas continham elementos bizarros. Na condição de reforçamento
não-contingente, as respostas foram todas incorretas. Já na última fase, com o
reforçamento contingente para todas as questões, a participante respondia corretamente,
com exceção de uma tentativa na qual todas as cinco perguntas foram respondidas
incorretamente. Após a saída da instituição foram realizadas 67 entrevistas
diárias na casa da participante, que apresentou respostas corretas para todas
as perguntas, o que garantiu a avaliação da generalização das respostas
corretas. Contudo, em duas entrevistas de follow-up foram
observadas respostas bizarras durante a primeira entrevista e repostas corretas
e respostas evasivas durante a segunda sessão de entrevista.
Resumindo, a fala psicótica se torna matéria de difícil compreensão para a comunidade. Contudo,
deve-se considerar que o estímulo ou parte do estímulo discriminativo da contingência
a qual a resposta verbal está relacionada pode não corresponder ou ser significativa
para as outras pessoas.
Em
outras palavras o discurso emitido por portadores de doenças mentais, como
esquizofrenia ou por afásicos, em geral, pode ser seriamente prejudicado, de
acordo com o feedback recebido pelo
meio em que esse indivíduo vive. Se ele for recriminado, zombado ou ignorado, a
cada enunciado emitido, a tendência é que ele se isole cada vez mais ou se
perca em seu próprio mundo, já que não há um interlocutor adequado ao seu
discurso. Ele preferirá falar consigo mesmo ou não falar nada, do que ser
incompreendido ou ignorado.
Para
dar um exemplo de um discurso psicótico, faço um recorte da pesquisa de Daísy
Cléia Oliveira dos Santos sobre a análise da fala psicótica via estratégias
operantes de intervenção, na qual ela entrevista um homem, de 55
anos de idade, segundo filho de uma prole de sete filhos, solteiro, de nível
socioeconômico médio e possuindo o ensino médio completo, diagnosticado com
esquizofrenia aos 22 anos de idade, internado seis vezes em instituições
psiquiátricas, sendo a primeira aos 25 anos de idade e a última a quatro meses
do início deste trabalho.
Fala psicótica
|
Comentário
|
“É país, país,
país, país da primavera. Japão, China, Itália, Hong Kong e Bang Labis”
|
A repetição
desnecessária de palavras e a apresentação de palavras inexistentes.
|
“Na astrologia ta
todas as idéias. Ta as quatro mães. Têm todas as diretrizes. Tem... Tem os
governadô. Tem os psicólogo. Tem tudo. Tem tudo. Ta tudo. Tudo na astrologia.
Eu soube que tem tudo que fazes. Tudo que pensas ta na astrologia”
|
Relato
ininteligível, quando comparada a relação entre os elementos contidos nas
frases.
|
“É o signo de
touro, o gêmeos, o..., o câncer e o, o vênus de libre no segundo a primavera,
o mercúrio-escorpião, o sagitário de júpiter, o capricórnio, pluto dos dez, o
aquário, o peixes e o marte-ares. E ta as mães. Ta a toura, a gêmeas, a
leonina (...)”
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Relato que pode ser
considerado bizarro, dada a sequenciação de conteúdos inexistentes, por exemplo,
“pluto
dos dez”.
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“Eles fala que na
minha encarnação anterior ... Eles acham que eu, que eu, que eu não zelei da
família. É perjúrio!. Que a, que a encarnação anterior eles falam que as
minhas cores na en ...encarnação anterior é verde, preto, branco e verão.
Então eu vou mudando, mudando de cor”
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Relato bizarro,
dada a dificuldade em apresentar o relato (p. ex., repetição das palavras de
ligação) e possuir um sentido estritamente particular do participante.
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“O cristianismo é
tecí o budismo é fiei. Porque é duas religião que acontece em quatro mundo.
No sul, no norte, no oriente e no ocidente. (...) aqui no ocidente é orei.
Eles acham que é orei, porque o orei é materialista”.
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Relação não usual
dos conteúdos do relato, por exemplo, “cristianismo é tecí”. Além da
apresentação de palavras sem sentido e desconhecidas (p. ex., teci).
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Assim sendo, a linguagem na esquizofrenia, ao fazer implodir toda a previsibilidade da Língua constituída, nos coloca diante do real da língua e de diversos dilemas sobre que caminhos seguir, em quais teorias se basear, quais os melhores procedimentos, qual a melhor forma de aproximação etc.
Acredito que novos caminhos precisam
ser trilhados visando resultados mais eficazes, que não sejam fruto apenas do
“controle químico” de comportamentos não aceitos socialmente, mas de uma
análise tanto discursiva quanto comportamental do sujeito.
Muitos psiquiatras, psicólogos,
cientistas e profissionais envolvidos em áreas que estudam psicopatologias e
neuropatologias, afirmam que mais do que em outras desordens mentais, no
diagnóstico da esquizofrenia a linguagem deveria ter um papel de destaque,
porque irá refletir claramente o grau da psicopatologia e apontar caminhos para
possíveis intervenções.
Dessa forma, reafirmo meu compromisso
em desenvolver pesquisas nessa área, a nível de pós-graduação, a fim de
contribuir para a extinção de visões preconceituosas e excludentes em relação a
doentes mentais e, quem sabe, fornecer ferramentas e conhecimento para que as
pessoas saibam lidar e compreender melhor o comportamento verbal e não-verbal
de pessoas portadoras de esquizofrenia.
Referências:
BRANDÃO, Helena
Hathsue Nagamine. Análise do discurso: um
itinerário histórico. In: PEREIRA,
Helena B. C. & ATIK, M. Luiza G. (orgs.) Língua, Literatura e Cultura em
Diálogo. São Paulo: Ed. Mackenzie, 2003.
PICARDI,
Fernanda Duayer. Linguagem e esquizofrenia: na fronteira do sentido. Dissertação
(Mestrado). Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Estudos da Linguagem.
Campinas, SP: 1997.
RAMOS, Roberto. Análise de discurso: uma abordagem dialética.
Conexão – Comunicação e Cultura, UCS, Caxias do Sul, v. 6, n. 12, jul./dez.
2007.
RESENDE, Viviane de Melo. Análise de discurso crítica: uma perspectiva transdisciplinar entre a
linguística sistêmica funcional e a ciência social crítica. In: 33rd International Systemic Functional
Congress, 2006.
SANTANA,
Luciana Aparecida Martins. Comportamento verbal e esquizofrenia: estratégia
operante de intervenção. Dissertação (Mestrado). Universidade Católica de
Goiás. Departamento de Psicologia. Mestrado em Processos Clínicos. Goiânia, GO:
2008.
SANTOS, Daísy Cléia
Oliveira dos. Análise da fala psicótica via estratégias operantes de intervenção. Dissertação (Mestrado). Universidade
Católica de Goiás. Curso de Mestrado de Psicologia. Goiânia, GO: 2007.
4 comentários:
Vc precisa divulgar mais seu blog!
,Estou divulgando no twitter! E no face também!
,Bjusssss
Olá Antônio...
Agradeço muito pelas palavras carinhosas e com certeza seguirei o seu blog também.
Voltei sempre e fique com Deus
Abraços,
Milena
Como esse blog é voltado para a 'análise' do ser humano, vou transferir para vocês o que venho ouvido muito: A ATUAL LINGUAGEM CORPORAL DO EX-PRESIDENTE LUÍS INÁCIO. Não sei se houve alguma mudança depois que FOI OBRIGADO a largar o cargo. Caso queira, meu email é ju.cappel@gmaqil.com
Um abração, Ju
(pode deixar que não farei nenhuma outra consulta além dessa)
Olá Jurema,
agradeço muito suas consultas ao blog e a convido a ler o novo post, que acabei de postar: Esquizofrenia e Tratamentos.
Quanto à atual linguagem corporal do nosso ex-presidente da república, não sei se há algum estudo sobre, dentro da área da análise do discurso, mas certamente o PT e toda a cúpula do mensalão tem recebido altas críticas por parte dos intelectuais e estudiosos, uma vez que eles tentam, descaradamente, nos convencer de uma inocência inexistente.
Volte sempre..Você é muito bem vinda.
Abração,
Milena
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